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Palabra del Ejército Zapatista de Liberación Nacional

May152021

Golfinhos!

Golfinhos!

Maio de 2021.

Foram momentos dramáticos. Encurralado, entre cabos soltos e a borda, o bichinho ameaçava a tripulação com sua lança, enquanto pelo canto do olho ele observava o mar revolto, onde um Kraken, da espécie «kraken escarabujos» -especialista em comer besouros-, espreitava. Então, o intrépido clandestino tomou coragem, levantou seus múltiplos braços para o céu e sua voz bramiu, opacando o barulho das ondas que se chocavam contra o casco de La Montaña:

Ich bin der Stahlkäfer, der Größte, der Beste!Beachtung! Hör auf meine Worte! (Eu sou o besouro de aço, o maior, o melhor. Atenção! Escutem minhas palavras!).

A tripulação parou. Não porque um inseto esquizofrênico os desafiou com um palito e uma tampinha de plástico. Nem porque falava com eles em alemão. Foi porque escutar sua língua materna, depois de anos ouvindo apenas o espanhol tropical costeiro, os transportou para sua terra natal como se fosse por um raro encantamento.

Gabriela diria depois que o alemão do bichinho estava mais próximo do alemão de um imigrante iraniano do que do Fausto de Goethe. O capitão defendeu o clandestino, alegando que seu alemão era perfeitamente compreensível. E, como onde o capitão manda Gabriela não governa, Ete e Karl aprovaram, e Edwin, embora só tenha entendido a palavra «cumbia», concordou. Portanto, o que estou lhe dizendo, é a versão do bicho traduzida do alemão:

-*-

«A hesitação de meus atacantes me deu tempo para refazer minha estratégia defensiva, recompor minha armadura (porque uma coisa é morrer em combate desigual e outra bem diferente é morrer em desordem), e lançar minha contra-ofensiva: um relato….

Foi há algumas luas atrás, nas montanhas do sudeste mexicano. Aqueles que lá vivem e lutam tinham lançado um novo desafio para si mesmos. Mas, naquela época viviam em ansiedade e desânimo porque lhes faltava um veículo para sua viagem. Assim foi até que eu, o grande, o inefável, o etc., Don Durito de La Lacandona A.C. de C.V. de (i)R. (i)L. cheguei em suas montanhas (a sigla, como todos devem saber, significa «Adiante Cavaleiro de Cavalgadura Versátil de Irresponibilidade Ilimitada«). Assim que se espalhou a notícia de minha chegada, multidões de moças, infantes de todas as idades e até mesmo anciãs, correram, rapidamente, para me aclamar. Mas eu me mantive firme e não sucumbi à vanglória. Fui então para os aposentos daquele que estava encarregado da malfadada expedição. Por um momento fiquei confuso: o nariz impertinente daquele que estava fazendo e refazendo as contas impossíveis para custear as despesas da expedição punitiva contra a Europa, me lembrou aquele capitão, que mais tarde seria conhecido como SupMarcos, que orientei durante anos e a quem eduquei com sabedoria. Mas não, embora semelhante, aquele que se diz SupGaleano ainda tem muito a aprender de mim, o maior dos cavaleiros-errantes.

De qualquer forma não tinham barco. Quando coloquei meu navio à disposição daqueles seres, o supracitado Sup, com sarcasmo, me respondeu: «mas só cabe um, e tem que ser muito pequeno, e é… uma lata de sardinhas!«, referindo-se à minha fragata, cujo nome, «Ponham suas barbas de molho» a nomeou a bombordo, na altura da proa. Ignorei tal impertinência e, caminhando através da multidão que ansiava por um olhar meu, uma palavra pelo menos, dirigi-me à ilha «Não tem nome«, descoberta por este narrador em 1999. Já no topo de sua, agora sim, copa arborizada, esperei pacientemente pela madrugada.

Amaldiçoei então o inferno, invoquei deusas de todas as latitudes, chamei a mais poderosa delas: a bruxa escarlate. Ela, a desprezada pelos outros deuses, dada como eles são ao machismo fanfarrão e ao exibicionismo. Ela, a afastada pelas outras deusas, dadas à falsa beleza de enfeites e cosméticos. Ela, a bruxa escarlate, a bruxa mais velha: Oh, die scharlachrote Hexe! Oh, die ältere Hexe!

Conhecendo eu que as chances daqueles estranhos seres, autodenominados Zapatistas, conseguirem um navio decente eram escassas, eu sabia bem que somente o mais poderoso dos poderes mágicos poderiam tirá-los de problemas e cumprir com sua palavra. Portanto, chamei a bruxa mais velha, a de roupagem púrpura, que pode alterar a possibilidade de qualquer coisa acontecer. Ela fez contas e contos e chegou à conclusão de que, de fato, a probabilidade de eles conseguirem um barco era quase zero. Assim ela disse:

«Mas nada posso fazer, se não houver pedido. E não apenas qualquer pedido. Deve ser feito por um Titã, um ser grande e magnânimo que, em sua boa natureza, abrigará aqueles que precisam de um mágico evento«.

E quem melhor do que eu, eu gritei alto. A senhora do manto carmesim levantou a mão exigindo meu silêncio. «Isso não é tudo«, sussurrou ela. «É necessário que este Titã arrisque sua vida, sua fortuna e sua reputação na odisseia que estes seres pretendem«. Ou seja, que ele os acompanhe com seu fôlego e gentileza e, ao lado deles, embora não ao seu lado, enfrente desafios e dificuldades. Ou seja, estará e não estará.

Eu concordei porque minha única riqueza são minhas façanhas, arrisco a vida apenas por existir e, bem, minha reputação está nos sótãos do mundo.

A bruxa irmã fez o que se faz nestes casos: ligou seu computador, conectou-se a um servidor na Alemanha, digitou não sei que encantamento, modificou um gráfico de probabilidade e aumentou a porcentagem de quase zero para 99,9%, digitou novamente e um zumbido de sua impressora deu o papel que saiu dele. Não sem antes apreciar a modernização em curso na associação das bruxas escarlate e afins, tomei a nota. Uma única frase a preencheu:

«Se o titã de aço for, encontre seu semelhante, que disso depende o faltante».

Que significava aquilo? Onde poderia eu encontrar algo ou alguém, não mais semelhante, mas digamos remotamente próximo de minha grandeza? Não há muitos Titãs. De fato, segundo a wikipedia de abaixo e à esquerda, eu sou o único que prevalece. Então «de aço». O homem de aço? duvido; não acho que a Bruxa Escarlate tenha recomendado um macho. Portanto, uma fêmea ou fêmea de aço.

Caminhei. Viajei da Patagônia para a longínqua Sibéria. Atravessei estradas com o digno Mapuche, gritei com a Colômbia ensanguentada, atravessei a dolorosa mas persistente Palestina, passei por mares manchados pela tristeza negra dos migrantes, e refiz meus passos, acreditando, erroneamente, que havia falhado em minha missão.

Mas, ao desembarcar na geografia que chamam de «México», algo chamou minha atenção. Em águas turquesas um navio sofria com os reparos e remendos que sua tripulação lhe dava. «Stahlratte«, se lia em um dos lados. Como encontrei a bruxa escarlate na Alemanha de abaixo, e essa palavra significa «rato de aço» em sua língua, decidi tentar minha sorte. Esperei, com sábia paciência, pela noite e pelas sombras que abrigariam a solidão do barco. Subi habilmente pela proa e, contornando por estibordo, cheguei até onde se encontra o centro de comando ou direção do navio. Nele, um homem maldizia em língua germânica com impropérios e blasfêmias que entristeceriam o próprio inferno. Dizia algo sobre a tristeza de deixar os mares e as aventuras. Eu sabia então que o navio estava contando seus últimos dias, e seu capitão e sua tripulação tinham pesadelos de uma vida em terra firme. As bruxas escarlates de todo o mundo estavam conspirando em meu favor e sorte. Mas cabia a mim, o besouro de aço inoxidável, o maior cavaleiro-errante, e etcétera, encontrar «o faltante». Esperei então que o capitão parasse com seus lamentos e maldições. Quando se calou e só um soluço lhe sufocava a garganta, subi ao leme e de frente para ele disse: «Eu Don Durito, você quem?» O capitão não hesitou em responder «Eu capitão, você clandestino» enquanto brandia um jornal ou revista e ameaçava oprimir minha bela e esbelta figura. Foi então que, em voz alta, me apresentei. O capitão hesitou e guardou silêncio e o jornal ou revista.

Depois, algumas frases foram suficientes para que ambos compreendêssemos que éramos pessoas do mundo, aventureiros por vocação e escolha, seres prontos para enfrentar qualquer desafio, por mais imponente e terrível que fosse.

Já em confiança, contei-lhe a história de uma odisseia em andamento, algo que mais tarde preencheria os anais das histórias que virão, a mais perigosa e ingrata das tarefas: a luta pela vida.

Entrei em detalhes, falei-lhe de um barco construído no meio das montanhas, sem água a não ser a chuva para dar-lhe vocação e razão de existir. Contei-lhe daqueles que tinham decidido abraçar tamanha ousadia, de lendas sobre uma montanha que se recusa a aprisionar seus pés na terra, de mitos e lendas maias na voz de seus originários.

O capitão acendeu um cigarro, me ofereceu um, mas eu tive que recusar quando tirei meu cachimbo. Compartilhamos o fogo e o fumo do tabaco.

O capitão ficou calado e, depois de algumas passadas, disse algo como: «pela minha fé, que grande honra seria juntar-me a uma causa tão nobre e louca«. E acrescentou: «Agora não tenho tripulação, pois já estamos na aposentadoria, mas estou certo de que mulheres e homens virão até mim apenas com o encanto desta história. Vá com os seus e diga a eles para contarem com o que somos, seres humanos e navio«.

Tendo terminado minha história, dirigi-me àqueles que ameaçaram me atirar ao mar: «E assim foi que vocês, meros mortais, embarcaram nesta aventura. Portanto, deixe-me em paz e volte ao seu trabalho e afazeres, pois devo cuidar para que o Kraken deixe nossa casa e nosso caminho em paz. Para isso, convoquei amigos peixes que o manterão afastado«.

-*-

E záz, naquele momento alguém no convés gritou «Golfinhos!» e tod@s subiram no convés armados com câmeras, telefones celulares ou apenas com seus olhos atônitos.

Na confusão, Durito, o maior dos Titãs, o único herói à altura da arte, o cúmplice de magos e bruxas, escapuliu e subiu novamente para, agora sim, a Coifa e dali cantou cantos que, juro, foram replicados pelos golfinhos que, entre ondas e sargaços, dançaram pela vida.

-*-

Mais tarde, no jantar, o capitão confirmou a história do bichinho. E a partir daquele momento, o bichinho deixou de ser «o bichinho» e passou a ser chamado, a partir daquele momento, «Durito Stahlkäfer«, «Durito, o Besouro de Aço».

«Mais uma listra para o tigre«(1), teria dito o falecido SupMarcos, três metros abaixo do convés, err, quer dizer, abaixo da terra.

Agora, com camaradagem, Gabriela corrige a pronúncia germânica de Stahlkäfer; no ombro de Ete, Durito sobe ao topo do mastro principal; acompanha Carl quando toma o leme e o diverte com histórias terríveis e maravilhosas; sobre a cabeça de Edwin lhe dirige no desfraldar e baixar das velas; e nas madrugadas compartilha com o capitão Ludwig o fumo e a palavra.

E, quando o mar está agitado e o vento aumenta seu luxurioso cortejo, o maior espécime de cavaleiro-errante, Stahlkäfer, entretém o Esquadrão 421 relatando lendas incríveis. Como aquela que conta a história absurda de uma montanha que barco se fez pela vida.

Dou fé.

SupGaleano.

Planeta Terra.

Nota: O vídeo dos golfinhos convocados por Stahlkäker foi gravado por Lupita, porque a equipe de apoio da Comissão Sexta, encarregada de tal missão, estava ocupada… vomitando. Sim, é uma vergonha. Agora a missão do Esquadrão 421 é apoiar a equipe de apoio. E ainda há que atravessar o Atlântico (suspiro).

 

Música: «La Bruja», son jarocho interpretado por Sones de México Ensamble, com Billy Branch. Imagens: Parte da travessia de La Montaña, chegada e desembarque em Cienfuegos, Cuba; e a reunião do Esquadrão 421 para ver a página do Enlace Zapatista.

(1) Expressão que designa uma descrição passiva de algum fato negativo contrário à vontade do orador que a assume com humor e resignação.

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1 Comentario »

  1. <3

    Comentario de Mônica Carneiro — mayo 16, 2021 @ 8:23 am

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