LIÇÕES DE GEOGRAFIA E CALENDÁRIOS GLOBALIZADOS
14 de Abril de 2017
“Nada mudou”, é o que dizem.
“Em Chiapas, os indígenas estão igual ou pior que antes do levante zapatista”, reiteram os meios de comunicação privados toda vez que seu capataz pede.
Há 23 anos, de diversas partes do mundo chegou a “ajuda humanitária”. Os indígenas zapatistas percebemos então que não eram esmolas o que nos mandavam, mas apoio para resistência e rebeldia. Ao invés de devorar tudo ou vender, como fazem os partidários, com esses apoios fomos levantando escolas, hospitais, projetos para autogestão. Pouco a pouco e não sem problemas, dificuldades e erros, construímos as bases materiais para nossa liberdade.
Ontem escutamos o Subcomandante Insurgente Moisés nos dizer que as comunidades indígenas zapatistas se organizaram não para pedir ajuda, mas para apoiar outras pessoas em outras terras, com outras línguas e culturas, com outros rostos, com outro modo, para que resistam. Ele falou do processo para cumprir com isso. Qualquer um que tenha escutado suas palavras pode dizer, sem equívoco, que o que se vê nesse longo caminho que vai do cafezal a este café embalado, há uma constante: Organização.
Mas voltemos a 1994-1996
Conforme chegavam mulheres, homens e outroas de diversos lugares do México e do mundo, as zapatistas, os zapatistas percebemos que, neste calendário, não era uma geografia específica que estendia a mão e o coração.
Não era a soberba Europa que sentiu pena dos pobres indiozinhos, que inutilmente, queria ter exterminado séculos antes.
Foi a Europa de baixo, rebelde, a que, independente do seu tamanho, luta dia a dia. Que, com seu apoio, nos dizia “não se rendam”.
Não era o norte inquieto e brutal que é o governo e o Poder escondido atrás da bandeira das barras e
turvas estrelas que, simulando humanidade, mandava migalhas.
Foi a comunidade latina e anglo que defende sua cultura e modo, que resiste e luta, que não se embruteceu com a droga do “sonho americano”, a que nos apoiava enquanto murmurava “não se vendam”.
Não era o México partidário, o de nomenclatura de todas as derrotas convertidas em postos e cargos para os dirigentes esquecendo das bases, que tratavam de cobrar duplamente: cobrando o sangue dos nossos e cobrando as esmolas que traziam.
Foi o México de baixo, o que se organiza sem se importar se somos muitos ou poucos, se saiam ou não nas notícias, se entrevistam ou não nos meios de comunicação pagos; o que carrega seus mortos, seus presos, seus desaparecidos não como um lamento, mas como compromisso. Esse México foi quem tirou algo do pouco que tinha para nos dar enquanto em seu olhar nos mandava: “não desistam”.
Da África, Ásia e Oceania também chegou o alento e a esperança sussurrando-nos: “resistam”.
E desde dos primeiros anos nós zapatistas, entendíamos que não nos deixavam uma ajuda mas
um compromisso, e desde desse calendário temos nos esforçado para honrá-lo.
Ainda com tudo contra, perseguidos pelo exército e paramilitares, difamados pelos meios de comunicação pagos, esquecidos por todos aqueles que descobriam não tirariam proveito da nossa dor, ainda assim, nos empenhamos em honrar essa dívida, todos os dias e em todas as partes, não sem erros e falhas, não sem tropeços e quedas, não sem mortes.
Esse homem, essa mulher, esse(a) outroa, que luta em outro canto do planeta, pode dizer agora que lutou ao nosso lado. E sem medo pudemos desejar a nós os erros e atoladas, e, com justiça, fazer suas nossas conquistas que, ainda que pequenas, tem seu valor.
Graças a todas essas pessoas que foram e são nossos companheiros talvez sem saber, não somos mais os mesmos de 23 anos.
Duas décadas atrás, cada companheiros e companheira que falava, invariavelmente terminavam suas palavras pedindo desculpas pela fluidez do Espanhol.
Hoje, sem esquecer sua língua materna, qualquer de nossos jovens y jovenas, com carinho te corrigem a pronuncia e ortografia a mais de um, uma, umoa com diplomas universitários.
Há algumas décadas o EZLN era uma organização, referente e comandada pelas comunidades indígenas. Hoje são elas mandam e nós que obedecemos.
Antes as dirigíamos e ordenávamos, agora nosso trabalho é ver como apoiamos suas decisões.
Antes íamos a frente, marcando o rumo e o destino. Hoje vamos atrás de nossos povos, não são poucas as vezes que corremos atrás deles para alcançá-los.
Passamos para segundo plano. Haverá quem pense que isso é um fracasso.
Para nós é uma boa prestação de contas que podemos dar aos nossos mortos e nossas mortas. Como o SupPedro, com a companheira Malena, que faleceu apenas a alguns dias, e que todavia não podemos falar sem que a dor contraía as mãos e umedeça as palavras e o olhar.
Tão grande era ela para nós zapatistas.
Chegamos nestes dias e nesta reunião com sua morte sobre os ombros e, ainda que não explicitamente, sua voz se tornou a nossa.
Fazem alguns dias que queríamos saldar nossa dívida com quem hoje nos falta e muito. Queríamos fazer nossas palavras que imaginamos serem suas se aqui estivesse, ao nosso lado, como estiveram em toda sua vida.
Mas agora devemos seguir, e fazer a todos saberem que nossas comunidades, nossos povos, decidiram que é o momento de lembrarmos a quem foi creditado e confiado em nossa bandeira e modo, que aqui estamos, que resistiremos, que não nos rendemos, não nos vendemos, que não desistimos.
Queremos que saibam que agora podem contar conosco e com as comunidades zapatistas. Ainda que poucos e a distância, vamos apoiá-los.
Nosso apoio não será uma esmola. Também será para eles, elas, eleas, você, um compromisso.
Porque esperamos que resistam até o último. Esperamos que não rendam, que não se vendam, que não desistam.
Porque esperamos que mesmo nos momentos em que se sintam mais sozinhos, mais derrotados, mais esquecidos, tenham em sua dor e sua angustia ao menos uma certeza: Há alguém que, ainda que longe com a cor da terra, lhes dizem que não estão sozinhos, sozinhas, sozinhoas. Que sua dor não é alheia a nós. Que sua luta, sua resistência, sua rebeldia, também é nossa.
Vamos apoiá-los da nossa maneira, queremos dizer, um apoio organizado.
Saibam e tenham claro, que neste apoio vai nosso carinho, nossa admiração, nossa respeito.
A embalagem não diz, mas dentro vai o trabalho dos homens, mulheres, crianças e anciãos zapatistas.
Porque há vários anos entendemos que nosso anseio não local, nem nacional, é internacional.
Entendemos que as fronteiras prejudicam nossos esforços. Que nossa luta é mundial. Sempre foi
mas não sabiam aqueles que nos pariram e só quando o sangue indígena tomou o lema além do motor, e marcou o rumo, descobrimos que a dor, a raiva e a rebeldia não tem passaporte e que são ilegais para os de cima, mas são irmãs para os de abaixo.
Hoje podemos dizer “companheiro”, “companheira”, “companheiroa” a qualquer um que resista, se rebele e lute em qualquer parte do planeta.
Essa é a nova geografia que não existia naquele outro calendário.
Assim recebam nosso apoio que não se avergonha.
Recebam como ele é, uma saudação.
Com isso como um pretexto sacudam o mundo, risquem os muros, digam “não”, levante o coração e o olhar.
E se o poderoso não nos os vê nem os ouvem, em contrapartida os olham e escutam as zapatistas, os zapatistas que, mesmo que não sejamos grandes, viemos rodando desde seculos e sabemos bem que o amanha é parido como deve ser, ou seja, desde baixo e a esquerda.
Dos indivídu@s e coletiv@s
Existem muitas coisas que não podemos explicar. Sabemos que são assim, mas nosso conhecimento é rudimentar e não sabemos explicar o porquê.
Vejam, por exemplo, os “cabeças grandes” nos dizem que não sabemos marxismo (não sei se isso é um defeito ou virtude), que somos uma fantasia que se estende no tempo por causas que eles não podem explicar mas eles são céticos. Como não é possível que um grupo de indígena pense, eles dizem que o homem branco ou alguma força obscura nos manipula e nós leva a não sei aonde.
Nosso conhecimento, nós dizem, não é mais que voluntarismo e boa sorte no melhor dos casos, ou simples manipulação de alguma mente perversa na pior.
Mas não é que eles se preocupam se alguém manda em nós ou nos orienta. O que incomodam é que não são eles. Eles se incomodam por que não obedecemos, que a insubmissão nestas terras não seja uma bandeira a mas uma forma de vida.
Em resumo, se preocupam e ficam incomodados que sejamos zapatistas.
E a mesma incapacidade que supõem que temos para lutar, é estendida para o conhecimento.
Continuam a nós observar de cima. De suas enormes e luxuosas varandas com escárnio, com vergonha, com desaprovação. E voltam logo aos seus espaçosos camarotes e se masturbam pensando na sua bonança e bem-estar. Excitando-se ao imaginar a dor no outro, o desespero na outra, a angústia n@ outroa.
Porque eles, vão em cima no soberbo barco, navegam na grande propriedade flutuante que percorre as geografias e calendários atuais.
Mas se espiam e dirigem seu olhar para baixo e a esquerda, com uma preocupação mais de perto nos observarão.
Mas não, não crescemos para alcançá-los. Não nos estendemos para ser como eles.
Não, nós não somos eles. E não queremos ser.
Se nos observam mais de perto, simplesmente, porquê sua embarcação da soberba está afundando. Afunda de forma irremediável, e eles sabem que o latifundiário, os capatazes e feitores, que já tem barcos prontos para abandonar o navio quando a catástrofe for tão evidente que ninguém poderá negá-la.
Mas eles não ouvem. Eles são grandes estudiosos, manipulam com habilidade as novas maravilhas tecnológicas. Eles são os que podem, com estalar de dedo, encontrar justificativas para seu cinismo, sua maldade, sua imbecilidade que, pode parecer diferente, mas é: uma porcariada pedante e cínica. Eles que, com a mão, ignoram os argumentos que estão à sua frente, trocam e editam palavras e fatos para acomodá-los a sua conveniência.
E não lhes interessa se quer corrigir. Só querem consolar-se em sua baixeza, em sua solidão. E se pretendem individuais, únicos, irrepetíveis, mas não são mais do que milhões de moscas pairando na merda.
Eles acreditam saber e não sabem. Eles querem ganhar, e perdem.
Porque eles creem que estão a salvo do colapso. Que a dor será sempre alheia.
Acreditam realmente a que a desgraça tocará na sua porta e pedirá permissão antes de entrar em sua vida?
Confiam que fará um anúncio antes, que fará um aplicativo para celular que avise a aproximação da tragédia?
Esperam que soará o alerta e poderá sair em ordem do seu trabalho, sua casa, seu carro e se agrupar em um ponto?
Esperam que nos mundos miseráveis, aparecerá, de repente, a sinalização que indique: “ponto de reunião em caso de apocalipse”?
Eles, tem em seus povoados, em suas colônias, em suas cidades, em seus países, em seus mundos uma porta com um letreiro luminoso em cima indicando “SAÍDA DE EMERGÊNCIA”?
Supõem que será como nas séries e filmes de catástrofe, que tudo é normal e em um instante tudo se decompõem.
Pode ser. Eles são os que sabem, que oferecem julgamento e condenação.
Mas, para nós zapatistas, o pesadelo vai construindo o Poderoso pouco a pouco. Na maioria das vezes, se apresenta como um benefício, um avanço. As vezes com o progresso, o desenvolvimento, a civilização.
Mas entendam que somos indígenas, o que, segundo eles, quer dizer ignorantes, manipulados pela religião, ou pela necessidade, ou por ambas.
Para eles não temos nem a capacidade para diferenciar uma coisa de outra.
Para eles não somos capazes da mínima elaboração teórica.
Mas, por exemplo, há mais de 20 anos apontávamos para o colapso que sofreria a globalização neoliberal. Agora os cabeças grandes descobrem que, de fato, a globalização é explosiva, e escrevem artigos minuciosos para demonstrar o que se podia constatar desligando a televisão, o computador ou deixando em paz o celular por alguns instantes, e não dizíamos para sair as ruas, bastaria uma olhada pela janela para perceber o que estava acontecendo. Se citam e recitam entre si, se parabenizam, trocam bajulações e gracejos teóricos (ok, também são carnais, mas cada um é cada um)
Se houvesse justiça teórica, reconheceriam que os menores dentre os menores visualizaram antes a catástrofe em curso e fizeram o alerta.
Não disseram que se era boa ou má, não abundavam ou redundavam em citações de pé de página, nem acompanharam suas asserções com referências a nomes estranhos e com muitos níveis acadêmicos.
Conto isso porque , há alguns dias, lhes dizia que, entre as anotações do Subcomandante Marcos encontrei este texto que deveria explicar as razões e motivos que levaram um escaravelho chamado Nabucodonosor, a escolher um nome de luta e uma profissão idem, abandonar sua casa e família, armado com uma casca de cacaté como elmo, uma tampa de plástico de um frasco de remédio como escudo, um clipe desdobrado como lança, um galho como espada (que se chamava, claro, Excalibur), escolheu um amor impossível, e atribuiu a uma tartaruga a missão de montaria com o patriótico nome de “Pegaso”, e escolheu um escudeiro um guerrilheiro de nariz evidente, e se lançou a percorrer os caminhos do mundo.
Mas eu não procurava esse texto. Porque nos últimos dias tenho lido e escutado estudos e análises que sustentam que parece, é provável, pode ser, é uma suposição, a globalização neoliberal não é a solução milagrosa prometida e, na verdade, está acarretando mais prejuízos do que benefícios.
E fui então vasculhar nesse baú porque acreditava ter lido isso antes.
E então os encontrei e aqui os leio. É datado de abril de 1996 e é um discurso escrito por um escaravelho. Se entitula:
“ELEMENTOS PROMISÓRIOS PARA UMA ANALISE INICIAL COMO PRIMEIRA BASE DE UMA ABORDAGEM ORIGINAL PARA PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES FUNDAMENTAIS ACERCA DO EMBASAMENTO SUPRAHISTÓRICO E SUPERCALIFRAGILISTICOESPIRALIDOSO DO NEOLIBERALISMO E A CONJUNTURA DECISIVA DE 6 DE ABRIL DE 1994 EM PONTO ÀS 0130, HORA SUDESTE, COM UMA LUA QUE TENDE A ESVAZIAR-SE COM SE FOSSE O BOLSO DO TRABALHADOR NO AUGE DAS PRIVATIZAÇÕES, OS AJUSTES MONETÁRIOS E OUTRAS MEDIDAS ECONÔMICAS TÃO EFICAZES QUE PROCARAM ENCONTROS COMO O DE LA REALIDAD (Primeira de 17,987 partes)
O discurso é bastante sintético. De fato, ele consiste em uma só frase que diz assim:
“O problema com a globalização no neoliberalismo é que os globos explodem”.
Ah, eu entendo que a publicação “séria” da academia ou do universo limitado dos meios de comunicação privados, não se pode citar no pé de página: “Don Durito de La Lacandona. Op. Cit.1996). Porque logo ficaria claro, no final da publicação, que o autor referido é um escaravelho que acredita ser um cavaleiro andante e cujo rastro se perdeu em La Realidade, em 25 de maio de 2014.
Mas eu dizia que existem muitas coisas que não podemos explicar o porquê, mas elas são assim.
Por exemplo, a individualidade e o coletivo.
O coletivo é melhor que o individual. Não posso explicar cientificamente por que e têm todo o direito de me acursar de esotérico, ou algo igualmente horrível.
O que temos visto em nosso limitado e arcaico horizonte é que o coletivo pode trazer à tona o melhor de cada individualidade.
Não é que o coletivo te faça melhor e a individualidade pior, não. Cada um é cada um, um complexo conjunto de virtudes e defeitos (seja lá o que signifique uns e outros), mas em determinadas situações afloram uns e outros.
Experimentem ainda que uma única vez. Não vai acontecer nada. Em todo caso, se são tão maravilhosos como acreditam ser, então reforcem suas posições que o mundo não os merece. Mas talvez encontrem dentro de si mesmo habilidades e capacidades que não sabiam que tinham. Experimentem, de verdade, se não gostarem sempre poderão voltar para sua conta no Twitter, sua bolha no facebook e seguir ditando ao mundo inteiro como deveria ser e o que fazer.
Mas não por isso que agora lhes recomendo que trabalhem e lutem em um coletivo. O assunto é que a tempestade vêm. E o que se vê agora não nem remotamente o ponto mais alto. O pior ainda está por vir. As individualidades, por mais brilhantes e capazes que se sintam, não poderão sobreviver sem os outros, outras e outroas.
Nós temos visto como o trabalho coletivo não somente tem permitido a sobrevivência de povos originários a várias tormentas destrutivas, como também avançar quando são comunidades e desparecem quando cada um pensa no bem estar individual.
No que se refere as comunidades indígenas zapatistas, o trabalho coletivo não levou ao EZLN, nem ao cristianismo, nem Cristo nem Marx tem a haver com ele, em momentos de perigo, frente as ameaças externas, para festas, a música e o baile, a comunidade nos territórios dos povos originários se fazem coletivamente.
Enfim, vejam.
Mas, como queriam, eu recomendaria que aproveitem o que fará o Congresso Nacional Indígena a partir de maio deste ano. Esperamos de verdade que o CNI cumpra seu mandado e não caia em busca de votos e cargos, mas que leve o ouvido irmão para aqueles que em baixo são dor e solidão, que os aliviem com o chamado da organização.
O andar destas companheiras e companheiros se fará visível em bairros, comunidades, tribos, nações, povos originários. Aproximem-se deles, delas, dos indígenas. Abandonem, se puderem, a lente do antropólogo que nos vê como bichos esquisitos e anacrônicos. Deixe de lado a pena e posição de missionário evangelizador que nos oferecerá salvação, ajuda e conhecimento. Aproximem-se como irmã, irmão, irmaoa.
Porque, quando chegar o momento que em que ninguém saberá para onde ir, esses originários, que hoje são desprezados e humilhados, saberão caminhar e olhar, saberão como e quando. Saberão, em suma, responder a pergunta mais importante e urgente nesses momentos: “o que segue?”
-*-
Agora, já para terminar, alguns comentários breves. Algumas dicas, então.
.-Quando Trump fala em recuperar as fronteiras dos Estados Unidos, diz que ela é do México, mas pelo olhar do camponês aponta para o território Mapuche. A luta dos originários não pode e não deve circunscrever-se ao México, deve alcançar o olhar, o ouvido e palavrar incluindo todo continente, do Alaska até Tierra de Fugo.
.- Quando na voz do Subcomandante Insurgente Moiśes, dissemos que o mundo inteiro está se convertendo em uma propriedade e os governos nacionais capatazes que fingem poder e independência quando o patrão está fora, não apenas estamos apontando para um paradigma com consequências para a teoria. Também estamos apontando para um problema que tem consequências práticas para a luta. E não nos referimos as grandes lutas, a dos partidos políticos e dos movimentos sociais, mas a todas as lutas. O zapatismo, como pensamento libertário, não reconhece os rios Bravo e Suchiate como limites de sua aspiração de liberdade. Nosso “para todos, tudo” não reconhece fonteiras. A luta contra o Capital é mundial.
.- Entre as opções, nossas posição tem sido e é clara: não há capataz bom. Mas entendemos que alguém faça, na maioria das vezes como terapia de consolo, uma diferenciação entre os ruins e os piores. Ok, quem pouco faz, com pouco ou nada se conforta.
Mas eles deveriam tratar de entender que quem arrisca tudo, tudo quer. E para nós zapatistas, o tudo é a liberdade.
Não queremos ter que escolher entre um patrão cruel e um bondoso, pura e simplesmente não queremos patrões.
É isso
Muito Obrigado.
Subcomandante Galeano.
Abril de 2017.
DO CADERNO DE NOTAS DO GATO-CACHORRO
I.- Imagens da Propriedade Global
Chamaram para prestar contas os senhores John McCain e John Kelly. O primeiro é senador e o segundo é secretário de Segurança Nacional, ambos no governo norte-americano. O patrão reprovou o comentário deles, sobre ser um problema uma candidatura de esquerda chegar à presidência no México, o que havia sido aproveitado por um dos pré-candidatos para se promover.
Tanto McCain como Kelly se entreolharam perplexos e argumentaram: “Mas estávamos nos referindo ao que pretendem os fucking índios feijoeiros brownies, que estão dizendo que podem governar não só o México mas o mundo inteiro com seu fucking council. Eles sim são um problema, não sei porque o outro se sentiu referido, ele sabe e nós que não representa ameaça alguma a não ser para sim mesmo.
O patrão, seja ele latifundiário, seja o capitalista, ouviu-os e moveu a cabeça com aprovação. Ordenou que se retirassem e chamou Donaldo e sua mamãe (que só aparece aqui pela ofensa), assim como os principais líderes políticos para dar indicações.
Horas depois, em uma solene sessão do congresso norte-americano, Trump condecorou o senador McCain e o general Kelly com a medalha ao mérito capitalista, a mais alta honraria que o patrão outorga aos capatazes, mordomos e feitores.
A sessão transcorria sem maiores contratempos quando começou a detectar muito barulho na sala de imprensa onde os correspondes designados para a Casa Branca estava em um tédiosoberbo. De repente, todos se aglomeraram em torno de um dos monitores.
Aconteceu que uma colega, mais entediada do que o topete de Trump, mudou de canal e chegou no canal do Sistema Zapatista de Televisão Intergalática (“SIZATI” sua sigla em espanhol).
Na tela se via a mesma cerimônia mas com uma câmera que filmava as costas de onde Trump estava.
Nesta imagem se via-se que Trump trazia um papel pregado em uma de suas nádegas que dizia “Kick me” e na outra nádega estava “Fuck me” e outro ainda, na altura do ombro esquerdo, onde se lia, “Vamos por tudo e para todos” e assinalava “O Fucking Congresso Nacional Indígena”.
Os correspondentes enlouqueceram e frenéticos ligaram para suas redações, as principais redes de televisão suspenderam sua programação habitual para transmitir em conjunto com o SIZATI. Em todo o planeta as telas se encheram com as nádegas do senhor Trump.
As consequências não esperaram: a muito honrada, discreta e recatada família Kardashian sofreu uma parada cardíaca porque seu reality show perdeu 100% da audiência; o mundo interior não viu a cena culminante da série The Walking Dead, onde Darill confessa seu amor a Rick e, quando se beijam apaixonadamente e Rick com o setinhas, zás! Michone cortou a cabeça de ambos e, afundando sua katana, disse olhando para câmera: “ É melhor ir até fucking selva lancandona encontrar meu verdadeiro amor, o fucking Subcomandante Galeano, não vou me rebeixar ao nivel fucking Rousita”; E tão poucos puderam ver o último episódio da série Game of Thrones, em que Dayanaris dá um beijinho em Tyron, demonstrando que o fucking pequeno ganha o que importa e que, de fato, John Snow não sabia de nada
Desde o palanque do congresso, Trump observou a agitação nos correspondentes e pensou consigo mesmo que finalmente a imprensa tinha entendido a grandeza dele, ou seja, do Trump himself.
Horas depois a sétima frota naval dos fuckins marines e a fuckin 101 divisão aérea vigiavam os mares e céus do mundo, esperando que os serviços de inteligência da OTAN descubram a localização do fuckin SIZATI para lançar 3 mil misseis Tomahawk com 3 três mil ogivas nucleares, além da mãe de todas as bombas.
No bunker do patrão chegou a informação: “os fucking bastards are fucking every where” que, em espanhol, se pode traduzir como “não temos fuckin ideia de onde esses caras estão”.
A indústria militar trabalhava a todo vapor, produzindo um novo pedido de mísseis, assim que havia que gastar os que já havia, se não, a fuckin sociedade do proprietário ia ficar brava. O patrão escreveu uma nova ordem. O fuckin secretário da defesa gringo olhou desconcentrado para o proprietário. O manda-chuva olhou com a cara de “faça já”, e o militar correu para transmitir a nova fuckin ordem.
Os 3 mil fuckin mísseis Tomahawk receberam um novo fucking target: a fucking Casa Branca (a de Trump, entende-se, dont worry fucking Peña Nieto)
“Disparem”, ordenou o fuckin proprietário, “encontraremos outro fuckin capataz”.
Umas poucas horas depois os líderes mundiais expressaram seu pesar ao “povo irmão dos Estados Unidos”, e uma larga fila de suspirantes esperava seu turno do lado de fora da casa grande do patrão.
Entre os enfileirados podia se distinguir a Hillary, o Chapo, a Calderona e o aspirante de polícia, Aurelio Nuño Ramsey, que repetia para si mesmo “disseram read, não red”.
Muito longe dali no sudeste, no estado mexicano de Chiapas, no alto de uma de arvore, conectadas com um computador a internet através a uma antena criadas pelo Subcomandate Moisés e Monarca com um tapa olho em um dos olhos, cipó, fita adesiva e um modem usb, uma menina e menino olham entre si desconcentrados e ela o reprova: “te disse para não clicar ai”. O menino se defende: “E por caso fui eu”. Em meio aos jovens, um animalzinho que parece um gato… ou um cachorro, movendo alegremente sua cauda e sorri com fuckin malicia.
(fuckin fade out)
-*-
II.- Defesa Zapatista e a pedra no caminho
“Porque os homens são tão malvados?”
A pergunta vem da porta da cabana e é a menina Defesa Zapatista quem me olha com severidade
Me surpreendeu. E estava tentando entender como era possível mais de 50 mísseis Tomahawk norte-americanos terem provocado somente 5 ou 6 mortes em um aeroporto militar na Síria. Ou esses Tomahawk foram fabricados na China, ou os gringos avisaram antes os russos para que tivessem tempo de abandonar.
Poderia pedir para a Defesa Zapatista da sua opinião, mas não acredito que o momento é oportuno. Enquanto lhes conto isso, a menina estava dentro da cabana e parou na minha frente. Ao seu lado, o gato-cachorro também me olhava firmemente com reprovação.
Eu estava a ponto de responder “como assim?”, mas a menina não estava esperando uma resposta, mas só se assegurava que eu estava ouvindo. E seguiu:
Porque deus fez você estudar tanto para ser bobo? Porque se prepara e treina para ser tão bobão?
Ou já nascem assim, mas quando são pequenos não se sabe e quando já estão grandes então o que é bobo é homem e a que é esperta é mulher?
Eu estava preparando um longo discurso de, como se costuma dizer, defesa de gênero, mas há um facão muito próximo da menina brava e não acho prudente tentar me mover, pois o gato-cachorro grunhe, hostil, em minhas botas
Não consigo entender o que provocou a fúria Zapatista da menina idem, mas ela não para nem para tomar ar.
Por acaso como mulheres que somos não sabemos usar o facão? Sabemos. E sabemos trabalhar a terra quando é roçada, quando é queimada e quando é semeada.
Por acaso não conhecemos os animais? Quero dizer outros, não falo dos homens.
Quando a tormenta passou, perguntei a Defesa Zapatista o que é que aconteceu que a deixou tão brava.
Entre ameaças e protestos de gênero, a menina me conta:
Acontece que o comissariado autónomo chegou a medir no campinho porque vão por um outdoor para o próximoCompArte
A Defesa Zapatista queria que o outdoor estivesse encostado do lado do rio. Assim, mais adiante, poderia servir para que ela subisse para receber o troféu quando completasse o time e ganhasse o campeonato
O comissariado viu que era melhor atrás da porteira que dá o caminho ao real, e não se preocupou com os argumentos da menina que, ao se ver contrariada, decidiu que o comissário, como homem, estava atacando seus direitos “como mulheres que somos” e começou a fazer, como se diz, a classe política.
Me contou que a coisa ficou grave porquê o Gato-Cachorro se sentiu obrigado a intervir na argumentação e mordeu o comissário no tornozelo. Assim o cachorro, gato o que seja e a menina foram parar na escola onde a promotora de educação escutou escandalizada a, como se diz, “relação dos fatos” que lhe contou o comissariado.
Resultado: de castigo, a menina e o gato-cachorro tiveram que procurar e falar com o Subcomandante Galeano para que ele explicasse por que é importante a arte na luta.
Eu não vi muita disposição de aprender digamos, nem na menina nem do animalzinho. Assim tratei de aplicar o meu famoso método pedagógico “volta e volta”, que se baseia no postulado filosófico que não há problema suficientemente grande que não se pode dar a volta”.
Então lhes contei o seguinte conto:
“A pedra no caminho
Haverá uma vez uma comunidade. Que todos os dias, muito cedo, homens e mulheres tomavam seu café e comiam um pouco de feijãozinho e depois de colocar uma bola de pozol e um garrafa com água na mochila, iam para a plantação coletiva. Assim era todos os dias, e o andar do povoado indígena seguia sua vida de resistência e rebeldia.
Mas acontece que um dia choveu violentamente e uma grande pedra se soltou de um morro e interrompeu o caminho até a plantação. O povoado todo foi ver. Sim, era uma pedra muito grande. Tentaram movê-la, mas nada, nem um pouquinho.
Então ali mesmo fizeram uma assembleia e se puseram a pensar o que fariam.
Uns disseram que não havia jeito, teriam que buscar outro lugar para plantar.
Outros diziam que não, que o terreno já estava arado e ficariam sem nada se não trabalhassem nele.
Outros diziam que a pedra tinha sido colocada ali pela máfia do poder como parte de um complot contra o Conselho Indígena de Governo no Congresso Nacional Indígena.
Então seguiram discutindo e fizeram vários grupos: um grupo dizia que teriam que rezar para deus pela retirada da pedra, outro grupo dizia deus que nada, que era a ciência; e outro dizia que teriam que investigar e descobrir as pegadas do chupacabras Salinas, o De Gortari, não o Pliego. Porque o Salinas De Gortari era o Salinas mau e o Salinas Pliego era o Salinas bom.
E então cada grupo fez o que pensava.
Os que rezava trouxeram incenso e uma imagem do santo padroeiro do povoado, fizeram um pequeno altar e ficaram ali rezando e rezando.
O outro grupo pegou seus cadernos e fita métrica e se puseram a medir e calcular para, com uma alavanca feita com madeiras, mover a pedra.
O outro grupo foi com uma equipe de detetives da marca “Minha Alegria” e com uma lupa e um microscópio examinavam a pedra para ver se o chupacabras havia deixado pegadas de seus cascos.
Os três grupos ali estavam, fazendo o que pensavam que era melhor para resolver o problema.
E assim estava quando chegou uma menina caminhando.
Vinha da plantação.
Todos a rodearam e começara a fazer perguntas.
O grupo da oração perguntava se deus havia mandado um anjo que havia voado por cima da pedra, e começaram a grita “milagre!”, “milagre!” e cantar salmos e louvores.
O grupo científico perguntou como havia resolvido a distribuição do ponto apoio, força e resistência, e ficaram apostos para tomar nota em seus cadernos.
O terceiro grupo pediu provas da participação do chupacabras malvado, enquanto redigiam um destacado onde os de baixo signatários convocavam todos a apoiar com seu volto ao redentor em turno. O destacado saldava os meios de comunicação de propriedade do chupacabras bondoso.
A menina calada olhava a todos confusa.
Por fim deixaram-na falar e ela explicou que, quando saiu de manhã com outro menino, aqui estava a porcaria da pedra (assim disse) e que como não podia passar, foram, o menino e ela, pelo facão e então fizeram um caminho que contornava a porcaria da pedra (assim disse) e, como sua maozinha, mostrou a picada que, de fato, dava volta no obstáculo e conectava com o caminho mais afrente. Ao seu lado, o menino não falava nada.
Até que então os três grupos percorreram o caminho.
Todos celebraram e parabenizaram a menina que havia resolvido o problema.
O comissário fez um discurso elogiando a menina. Que ela sim havia pensado que é muito importante o caminho para a plantação e por isso havia feito o caminho.
Todos aplaudiram e pediram que a menina dessa sua palavra.
A menina veio até a frente da assembleia e explicou:
Por acaso estou pensando nisto que disseram, e eu só queria colher umas flores de Chene´k Caribe para que minha irmãzinha pudesse brincar, e o Pedrinho aqui presente queria seguir as pegadas para roubar milho. E mostrou as flores a assembleia, enquanto o menino se escondia atrás dela.
Todos ficaram calados e com um pouco de vergonha.
Ao fim o comissário tomou a palavra e disse. “Temos que festejar”.
“Simmm” disseram todos e foram festejar.
Tan-tan.
Defesa Zapatista escutou com atenção todo o conto.
Então o gato-cachorro foi até onde está meu facão e, movendo a cauda, latiu e miou para a menina. A Defesa Zapatista ficou olhando e, de repente, ficou de pé exclamando “Claro!”, e pegou o facão.
“Vai fazer o outro caminho”, lhe perguntei.
“Que caminho que nada!”, me disse já da porta.
“Vou encontrar o Pedrinho e juntos vamos destruir o outdoor do comissário. Vou deixar o Pedrinho de guarda para que o inimigo não se aproxime. E vamos fazer outro outdoor mais bonito que o do comissário e vamos colocar muitas flores e cores e vai ser bem alegre os músicos e dançarinas vão querer ir no nosso outdoor e não no do comissário que vai ficar bem triste porque é um desses homens idiotas. E vou dizer aos músicos que façam uma canção que ganhamos a competição, e vou convencer as dançarinas que entrem em minha equipe e assim vamos ser mais, ainda que demore, vamos ser as melhores.”
Saiu a Defesa Zapatista. Eu fiquei na cabana, pensando o que havia falhado em meu método pedagógico.
Agora estou aqui, sentado fora da cabana, esperando que me avisem que a Defesa Zapatista está de castigo na escola, com o Gato-Cachorro dormindo em seu colo, enquanto escreve em seu caderno 50 vezes “não devo dar ouvido aos contos do fuckin Subcomandante Galeano”.
Fuckin obrigado.
Subcomandante Galeano.
Abril de 2017.
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