Próximo passo? II. O urgente e o importante.
3 de janeiro de 2017.
Tenho escutado vocês. As vezes quando estou aqui, com vocês, as vezes no stream do Cideci, as vezes com o que me dizem suas alunas e alunos zapatistas.
A todo momento trato de captar o sentido de suas exposições, o rumo e a direção de sua palavra. Escutamos exposições brilhantes, didáticas umas, complexas outras, polémicas outras mais, mas sobretudo as que se pode debater. Devem fazê-lo, pensamos, entre vocês. Para essa discussão, talvez ajudaria um pouco a esclarecer a confusão que existe entre ciência e tecnologia.
Além do mais, estamos tão surpreendidos como vocês. O interesse pela ciência não é algo que se tenha ordenado ou imposto, nasce de dentro.
Faz 23 anos, o feminismo vinha a nos reclamar que devíamos ordenar a libertação das mulheres, lhes dissemos que isso não se ordena, mas sim que é próprio das companheiras. A liberdade não se ordena, se conquista. Duas décadas depois, o que tem conquistado as companheiras daria vergonha a quem se dizia a vanguarda do feminismo.
Igual agora, a ciência não se impõe. É produto do processo dos povos, tal e como já explicou o Subcomandante Insurgente Moisés.
Disse que a maioria de suas participações nos pareceram boas, mas bom, o que alguns, muito poucos, expuseram, não sei como dizer-lhes.
Algum me admirou, escutava eu com atenção e esperava que em determinado momento nos diria: “todo isto que disse, é uma fraude, falei para que vejam como é a pseudociência e para que não confiem no princípio de autoridade, de que só porque alguém tem estudos quer dizer que o que diz é científico”. Mas não, continuou até terminar.
Lhe esquadrinhei o rosto para ver se sorria com malicia, e não. Estava sinceramente convencido das barbaridades que expressou, e recebia agradecido os aplausos que a galera que trouxe, e aqueles que bajulou na galeria, lhe davam.
Quando uma companheira insurgenta escutou isso de que já não deveríamos fazer bebês, que melhor adotar, porque já há muita gente no planeta, me disse: “então aí se acaba o povo, não se necessita a Hidra, basta com essa ideia. E isso é ideia de ricos; mesmo que seja um ou dois, já são muitos ricos e sobram, são os que estorvam e não servem. Essa ideia que disseram nos diz que não temos que lutar por fazer outro mundo, só temos que tomar anticonceptivo”.
Vou contar o que alguém me narrou já faz tempo, quando o mundo era como uma maçã esperando a mordida do pecado original.
Havia um homem que explicava o que fazia para viver. Ele usava um método que chamava “a Jiboia”. Tinha um acompanhante. Juntos, enchiam pequenos frascos de vaselina e punham etiquetas nas que se lia “Pomada Tudotudo” e em letra minúscula se podia ler que essa pomada curava tudo, desde o Alzheimer até o mal de amores, passando por pólio, a tifoide, a caída de cabelo, o mal olhado, os dentes careados, o mal cheiro dos pés ou da boca, e outros males que agora não lembro.
O que fazia essa pessoa é o seguinte: parava numa esquina e ficava berrando contra os zoológicos e os circos, que pobres animaizinhos, que estavam fechados assim. E anunciava: “Por isso vamos lhes mostrar uma jiboia, de 7 metros de comprimento, que encontramos no bueiro, e que resgatamos e cuidamos, e agora lhes mostramos a vocês, dama, cavalheiro, jovem, senhorita, criança e público em geral.”
As pessoas se aproximavam curiosas, e ainda mais porque não se via a jiboia por nenhum lado, só uma espece de pasta cheia de frasquinhos da pomada “Tudotudo”.
Quando considerava que havia gente suficiente, virava para seu ajudante e dizia em voz alta: “Secretário, traga-me a jiboia!”. O cumplice concordava com a cabeça e saía correndo para quem sabe onde.
O homem via seu ajudante se afastando. Escolhendo ao azar, comentava a alguma pessoa próxima: “Parece mentira, mas aí como se vê, esse pobre rapaz não podia andar faz apenas umas semanas, nem com muletas, só com cadeira de rodas. E olhem só agora. Até parece um milagre, mas não. Acontece que, para minha sorte, encontrei a fórmula científica de um medicamento que o curou. Olhe, vou lhes mostrar”.
Claro, o comentário era “inocente” e supostamente ia dirigido só a uma pessoa, más o fazia de modo que vários escutavam. Se dirigia então a pasta e pegava um frasquinho e dizia à pessoa primeira: “Olhe, isto é, do que te falava”. A pessoa pegava o frasco e lia a inscrição, enquanto o homem se desentendia, como ajeitando os frasquinhos, olhando para onde havia ido seu ajudante e comentando como para si: “¿por que demorará tanto este rapaz? Tomara que não tenha deixado escapar a jiboia porque se não, amanhã sai nas notícias e pobre animalzinho, talvez a levem ao cativeiro ou transformam ela em bolsas e sapatos”.
Enquanto isso, a pessoa inocente que recebeu o frasco, o mostrava a alguém próximo e contava a história do rapaz que foi buscar a cobra. Em poucos minutos, o frasco já tinha percorrido umas 10 pessoas, e o homem dizia então: “pessoal, já devolvam o medicamento à dama, cavalheiro, jovem, senhorita”, e agregava, “fique com ele, eu te dou, prove e já verá”.
Então outros se aproximavam pedindo sua amostra grátis, o homem, acanhado, se desculpava: “Não, lamento, não posso dar a todos, este é um pedido especial para a Secretaria de Saúde. Bom, mas é melhor que aproveitem vocês e não esses desgraçados do governo, só me deem uns 10 pesos para fabricar e repor o do governo”.
Bastava que se aproximassem uns 5, para que outros se somasse, e em pouco tempo já tinha ao redor uma aceitável quantidade de pessoas. As mesmas pessoas comentavam entre si de que se tratava, e o homem, fingindo desapego, só se limitava a cobrar, enquanto se lamentava do atraso do seu “secretario” e a mencionada jiboia.
Era questão de minutos, e o ajudante retornava todo agitado e preocupado, e algo dizia ao homem em voz baixa, ele só dizia “meu deus, ¿de verdade?, ¿tem certeza?” Então recolhia rapidamente sua pasta já vazia ou quase, e dirigindo as pessoas dizia: “Corram, escapou a jiboia e aí vem a polícia”, e corriam assustados. O alarme se generalizava, e as pessoas também se dispersavam.
Perguntei quanto lhe custava fazer o célebre medicamento. Me disse que os frasquinhos ele encontrava no lixo, e a vaselina saia mais ou menos um peso por frasquinho. Ganhava com esse método uns 100 pesos por dia, quando o salário mínimo era de $ 8.00 diários.
Bom, só quero dizer, aos que quiseram nos aplicar esse método neste encontro, que, mesmo que tenham grau académico, não lhes compramos seus frasquinhos. Acredito que tenham que procurar outra esquina para oferecer sua mercadoria à-toa.
-*-
Talvez algum mantenha a imagem do indígena ignorante e ingênuo, e pensou que podia nos dizer que ia falar de uma coisa, sabendo de antemão que ia fazer de outra coisa que não tem nada de científico. Nem sequer consegue ser uma pseudociência, e tenho lido nas redes sociais coisas melhor elaboradas, mais engenhosas, e igualmente falsas de cabo a rabo.
E deixem-me dizer-lhes: se se queixam de que na academia não tomam em conta como ciências o que é puro bla bla bla existencial, aqui tampouco.
Que na academia não levam em conta o ativismo político, aqui também não. Mas vou lhes dizer onde sim o levam em conta: na esquerda institucional. Aí sim, vocês chegam e dizem: sou doutor em não sei o que, e tenho participado em tantos protestos, atos, cursos, então sim os colocam em alguma direção do que seja, o como assessores, o como coordenadores.
Aqui não, se vêm que sabem de matemáticas, disso, mesmo que não saibam que coisa é mais-valia ou luta de classes, nem saibam se “A Internacional” é uma canção de luta, uma ópera ou o nome de uma mercearia.
Como já disse o Subcomandante Insurgente Moisés, a ciência é ciência, independente se você é partidista ou zapatista.
Tampouco vale que nos venham bajular ou cortejar, mas acho que isso funciona na academia institucional.
Nem valem as chantagens com a cor da pele, a preferência sexual, ou a crença religiosa. Sabendo ou não o que fala, não conta se você é de pele escura, branca, vermelha, amarela, negra ou bicolor; não conta se você é homem, mulher, homossexual, gay, trans ou o que seja; não conta se você é católico, muçulmano, ateu, agnóstico, maometano, ou o que seja sempre e quando, na hora de fazer ciência, faça ciência, não religião, filosofia ou o charlatanismo da moda nas redes sociais.
Então aqui não se discrimina. As diferenças não são deméritas, mas também não são um mérito.
Em relação aos sofrimentos ou dramas pessoais, ok, se entendem. Mas compreendam que somos um mau público para pedir lástima. Com tudo o que tenham sofrido e sofram, não poderia equiparar-se ao que tem sido, e é, ser o que somos como o que somos.
Mas compreendo pelo que vocês passam, cada um se masturba com o que pode. Contudo, não nos parece honesto mentir dizendo que viriam falar de ciência e não dos seus problemas existenciais.
Mas as companheiras e companheiros são nobres e compreensivos. Os convidamos a conversarmos e o cumprimos, escutamos com respeito, o que não quer dizer que engolimos suas pedras de moinho. Nós cumprimos. Essas pessoas não.
Imaginem que esta é uma assembleia de uma das comunidades zapatistas, e que vocês vão expor seus projetos. Vão de biologia, medicina, laboratório, análises clínicas, agroecologia, engenharia, farmacêutica, e a assembleia diz que adiante, que é urgente. De física, química, matemáticas, vulcanologia, astronomia, e demais ciências, a assembleia diz que adiante, que é importante.
E se se apresenta alguém que vem nos dizer que a ciência necessita fazer filosofia pós-moderna e levar em conta as variáveis existenciais de cada um, pois a assembleia vai escutar, mas não vai dizer que vá embora. Vão propor que infiltrem em Skynet e convençam a Inteligência Artificial de seguir a proposta científica que pretendem. Tenho certeza que colapsaria em pouco tempo, o que aliviaria a dualidade que sofre John Connor, e a humanidade inteira se livraria das sequelas de Terminator.
Claro, eu recomendaria que realmente estudassem e que percebessem que estão mais do lado de Aristóteles e Ptolomeo, que de Copérnico, Galileu e Kepler.
-*-
O Apocalipses segundo Defesa Zapatista.
Montanhas do sudoeste mexicano. Território em resistência e rebeldia. Há uma escola autónoma. Uma sala de aula. Nela, a promotora de educação fala para as meninas e meninos zapatistas:
“Antes de sair vou contar uma história como conto, vocês têm que pensar e responder a pergunta que vou fazer depois de contar a pequena história”.
Em um dos bancos de trás, uma menina para de desenhar no seu caderno complicados diagramas que, ainda que pareçam de fluxo, na realidade são de tácticas futebolísticas. Sobre as linhas e setas se pode ler “quando completemos a equipe”. Aos pés da menina há uma bola, desfiada e cheia de desgastes, e no seu colo dormia uma espece de gato… ou de cachorro… ou o que seja.
Não só a menina, agora toda a classe está atenciosa as palavras da promotora, que diz:
“Há uma voz que nos conta o que vê. Diz que façam de conta que o mundo já vai acabar já de uma vez, e que já só se vê que estão dois homens. Os dois estão parados um em frente do outro, e não se falam, mas se vê que estão muito bravos. São os únicos homens que restam, todos os outros já morreram. São os últimos homens da Terra. Não se falam nem se olham esses dois homens, mas estão discutindo muito embravecidos. E não se olham e nem se falam porque estão se comunicando por mensagens em seus celulares. Ou seja, que, como se diz, estão brigando como se seus celulares fossem suas armas, as únicas que sobram porque o mundo já está acabando. Estão se repreendendo muito raivosos esses homens, que já só eles dois se veem. E um está dizendo ao outro, ainda que seja mandando mensagem:
“A culpa é sua porque com a ciência você fez a destruição”. (send)
O outro vê a mensagem no seu celular e se embravece e responde:
“Não, a culpa é sua porque, em vez de ciência, você ficava dizendo que era melhor fazer como os antigos primitivos e não usar as técnicas”. (send).
O outro, agora mais irritado e até se vê no seu olho que está como se quisesse queimar a tela do seu celular. E então escreve:
“Não, a culpa é sua porque com tuas ciências e técnicas se fizeram as armas que de uma vez fizeram a matança que levou até os pobres animaizinhos”. (send),
O outro vê a mensagem e põe seu olho assim como “vai ver maldito” e responde:
“Não, a culpa é sua porque dizia que não temos que aprender ciências porque as ciências são más porque não respeita a mãe terra e lhe faz danos”. (send).
O outro vê com muito ódio seu celular e aperta as teclas para dizer:
“Não, é tua culpa porque com a ciência achava que sabia muito e não pensa na necessidade do povo e se achava que sabia muito, que ninguém ganha de mim e quanta porcaria dizia”. (send).
O outro lê e fica tão bravo que não pode acreditar, e olha o outro e põe seu olho assim como se dissesse “você vai morrer desgraçado”. Então escreve:
“Não, é mais tua culpa porque você criticou as ciências só por preguiçoso, que não quer estudar, nem aprender porque claro se vê que pesa muito tua cabecinha”. (send).
Assim demoram esses dois homens, brigando muito embravecidos com seus celulares. Não sabem, mas esse é o último dia, só até que chegue à noite, já se acaba tudo. E por estar brigando e vendo seus celulares, não percebem quando o sol se guarda, já de manhã toda a terra se obscurece.”
A promotora de educação, quem desenvolveu tudo que foi aprendido nos cursos de formação para contar história, conclui:
“Bom, essa é a história que contou a voz. Então, a pergunta que vocês têm que responder é “¿Quem dos dois homens sobreviveu ao fim do mundo?”.
As meninas e meninos ficam pensando.
Nas primeiras filas da sala de aula está sentado o Pedrito. Dizem para ele que é para pôr atenção, mas bem que sabemos que está muito apaixonnnnado pela promotora, mas não vamos publicar porque é um segredo que ele tem.
O Pedrito levanta a mão pedindo a palavra.
A promotora está a ponto de dizer “Vamos ver Pedrito, o que você pensa”, mas do fundo da sala de aula sai uma voz infantil feminina:
“Está fácil”.
Todos, incluindo a promotora, olham para a menina que se pôs de pé e já está com sua mochila nas costas e com o caderno e o lápis guardados. Com suas mãozinhas segura a maltratada bola, enquanto no piso o Gato-cachorro se estira despreguiçando. A professora diz com resignação:
“Vamos ver Defesa Zapatista, diga-nos teu pensamento”.
A Menina vai se aproximando da porta da sala enquanto expõe:
“Está fácil a resposta, porque claro se vê que os desprezíveis homens têm a culpa pelo fim do mundo, pela maldição de sua patriarcaladera essa, que é difícil de acreditar. E não estudaram a maldita Hidra que com sua gula passou a prejudicar a todo o planeta Terra. E então aí se fazem de muito manchões discutindo por seus celulares e suas músicas de cavalos e de amores e depois outra vez de desamores, o que quer que seja que não se decidem de uma vez.
Bom, professora, para que você entenda como mulheres que somos, te explico a palavra: “patriarcaladera” é assim como que só os homens mandam e querem que nós como mulheres estejamos atentas ao que eles querem, disso, daquilo, e depois nos dizem que gostam muito de nós e que temos bonitos olhos, mas por acaso estão olhando os olhos? Não, o que olham é outra coisa. Y eu não sei que coisa é essa que olham porque ainda não crio, mas assim me disseram minhas mamães que assim fazem os desprezíveis homens. E eu, quando cresça, que nem pensem, aí vou lhes dar cascudos e chutes se é que me olham mal. Então a “patriarcaladera” é que os desprezíveis homens só querem que lhes façamos o pozol e ainda nos incomodam que querem seu beijinho. ¿Você acha que vamos dar um beijinho assim fácil? Nada de nada, no lugar de beijinho, aí vai um cascudo. E depois pensam que vão nos convencer com músicas de cavalos. São idiotas, quero ver se encontram um cavalo que lhes faça pozol, onde vão encontrar? Nuncamente…”
A professora já conhece a menina, assim que a interrompe:
“Para aí Defesa Zapatista, responde à pergunta”.
A menina já está na porta. Enquanto, aos seus pés, o Gato-cachorro move alegremente o rabo, responde:
“Pois está fácil, nenhum dos dois homens vive, aí morrem por ser idiotas. E claro se vê que é por culpa da patriarcaleda essa que vai acabar com o mundo, mas nada que se acaba, porque acontece que existe alguém que vive e é a companheira que está contando a história. Porque se não é uma companheira a que conta a história então não há história. E a companheira que conta a história leva um bebê em uma manta e está dando a aula política ao bebe, para que aprenda que temos que nos ajudar como mulheres que somos”.
A menina não espera para saber o que diz a promotora de educação e, assumindo que sua resposta é correta, sai correndo gritando “vamos brincar!”, enquanto o Gato-cachorro e o resto da classe saem atrás dela.
A promotora de educação sorri enquanto guarda seus cadernos e livros, um dos quais leva na capa “Antologia XX Aniversário. Congresso Nacional Indígena. Nunca mais um México sem nós”. Já para retirar-se, a professora percebe que não todos os alunos saíram.
No banco da frente, está o Pedrito, assim como triste e derrotado. A promotora vai e se senta ao seu lado e lhe pergunta:
“¿O que foi Pedrito, por que você está triste?”
O Pedrito suspira e responde: “Porque já não pude responder porque Defensa Zapatista ganhou a palavra”.
“Ah”, diz a Professora, “não se preocupe Pedrito, Qual era tua resposta?”
Pedrito explica com tom de obviedade:
“Pois eu ia responder que a história não tem sentido, porque si só sobram dos homens brigando com seus celulares, então ¿quem está trabalhando para que tenham sinal de celular? Isso quer dizer que há outros que continuam trabalhando, ou seja, que não sobram só dois. Ou seja, que, para que me entenda professora, a sua história falta lógica, coerência em argumento. Então a resposta é que a premissa está mal, por tanto, a conclusão, qualquer que seja, é falsa. Isso se teria entendido se se aplica o pensamento crítico a análise” (é verdade que assim fala o Pedrito, se algum dia vocês o conhecerem vão ver que não estou inventando).
Pedrito, depois de falar, volta a sua posição de vergonha e tristeza.
A promotora de educação está pensando o que significam as palavras “coerência” e “premissa”, e que sempre acontece assim com o Pedrito, que usa palavras que põem em apertos até à Comandância. A promotora não tem vergonha de perguntar ao Pedrito que significam essas palavras, mas vê que Pedrito está triste, assim que o abraça e lhe diz:
“Não se preocupe Pedrito, a tua resposta também está correta”.
Pedrito, ao sentir-se abraçado, se põe de todas as cores e faz cara de “ninguém nunca me havia abraçado”, tal e como lhe ensinou o finado Sub Marcos. Enquanto se deixa querer, Pedrito pensa que teve bom que Defesa Zapatista tenha respondido primeiro, porque assim a promotora está lhe abraçando, e no abraço, Pedrito entende que não, que o mundo não vai se acabar, que enquanto o abraço dure, o mundo seguirá dando oportunidade à vida, porque a vida é isso, um abraço.
Isso está refletindo Pedrito quando, na porta, aparece a menina e lhe diz: “De pressa Pedrito, temos que completar a equipe para a pelada”.
Pedrito se separa do abraço da promotora como se o coração se arrancasse, mais vai com a menina, porque ele é, além de menino, zapatista, e um zapatista não pode deixar que a equipe não se complete por sua culpa. Antes de sair, Pedrito diz a menina: “só que claro te digo que de goleiro não quero, melhor põe o cavalo choco no gol, eu quero ser atacante”.
“Defesa Zapatista” não vai deixar que a última palavra no conto seja de um menino, assim diz:
“Que atacante que nada. O Sub Galeano me ensinou uns vídeos e já tenho um novo plano. Agora vamos jogar com a ciência do “futebol total” das laranjas holandesas essas. Você acha que não se tem que estudar para o jogo? Sim. As duas coisas, com as ciências e as artes. Logo te explico. Só completamos a equipe e você vai ver, não se preocupe, já vamos ser mais, de repente dilata, más já vamos ser mais”.
Se vão o menino e a menina. Até então podemos ver que a menina está com uma camisa laranja que quase pega nos calcanhares e que atrás reluz em letras tortas “Cruyff” e mais embaixo se lê: “Resistencia e Rebeldia”.
No canto do campinho, os espera um bagunçado grupo formado por: um velho cavalo que mastiga com calma uma bolsa vazia de tabaco; um homem baixo de estatura e pelo grisalho, tremendo apesar do abrigo que porta; outro homem alto e magro que sobressai por sua altura e pelo estranho boné que tem, o qual olha com interesse, através de uma lupa, a um estranho animalzinho que, à distância, se assemelha a um cachorro… ou um gato… ou um gato-cachorro.
Cerca daí, onde a comunidade se empenha em esboçar no muro, mãos anónimas plasmaram, embaixo e à esquerda, um graffiti que reluz em colores. Nele se lê:
“Somos o Congresso Nacional Indígena e vamos pôr tudo, para todas e todos”.
Muito longe desse lugar, dentro de um bunker as sirenes de alarme ululam e a terra se estremece.
Encima, o irmão John Berger, sorrindo, desenhou com nuvens, para quem olha alto, uma pregunta: “E você, o que faz?”
-*-
O urgente e o importante.
Á história que vou contar é um pouco triste. É porque contém as lágrimas de uma menina zapatista. Mas, apesar disso, ou precisamente por isso, vou contar porque, ao escutar vocês falar, expor, refletir e tratar de responder e ensinar, eu imaginei o que será o próximo passo. Não sei se vocês têm feito o mesmo. Se não, eu recomendo, pensem no próximo passo.
Eu imaginei que estamos em outro tempo para adiante. certo:
Sem que a antecedesse uma bola, havia chegado a minha cabana “Defesa Zapatista”. Na sua carinha se via que havia estado chorando, e ainda algumas lágrimas brilhavam nas suas bochechas. “Defesa Zapatista” sustenta que as meninas não choram, que isso é coisa de homens, que as mulheres são fortes. Assim que entendi por que a menina havia vindo a minha cabana, onde só habitam fantasmas e silêncios. Aqui está segura, aqui pode chorar sem que ninguém, que não seja eu, a veja. Aqui pode guardar sua fortaleza em uma gaveta e deixar que o sentimento lhe encha o olhar e faça liquida a vergonha.
Eu não disse nada. Fiz como se não a visse, como se estivesse varrendo o chão do tabaco e os papeis amassados que se estendiam ao redor da mesa.
Por fim, ela limpou as lágrimas com o lenço vermelho, suspirou e disse com voz roca:
“Oi Sub, ¿você sabe o que é mau sonhar?”
“Por si”, lhe respondi, “os maus sonhos se chamam pesadelos”.
Ela se interessou e preguntou: “¿e qual é o trabalho das quesadillas, por que e quem as fez?, porque são tão feias.”
“Se chamam “pesadelos”, não “quesadillas”. As quesadillas são boas si tem queijo. Os pesadelos não são bons. Mas, ¿Por que você me pergunta isso?”
“É que sonhei algo muito feio e acordei assim com uma dor na pança, não está bem, dói”, disse.
“Conte-me”, lhe disse e acendi o cachimbo.
“Bom, acontece que sonhei que estávamos na assembleia do povoado, e que estava muito difícil a situação por culpa do mal sistema. E que estava chegando muitas pessoas para pedir entrada no povoado porque em outros lados já não se podia viver, então vinha o povo porque nós como zapatistas sim nos preparamos.
Mas estava chegando gente até de outros países para saber onde ficar.
Então não alcança a comida e a comunidade tem que produzir mais a terra, porque como zapatistas temos que apoiar-nos com outros povos do mundo porque somos como se diz “companheirismos”.
Então estavam vendo na assembleia como iam organizar para dar alimento a essas irmãs e irmãos.
Então acontece que alguém da assembleia diz que temos que procurar mais terreno onde se possa semear.
E então outro diz que o campinho onde jogamos futebol, que viu que já floresceu o Petumax com suas flores, assim brancas, mas não, assim cinza, mas não, acho que cor creme ou não sei como se chama sua cor.
E que viu que também está o Chene´k Caribe, e é verdade porque eu brinco que suas flores são como franguinhos.
E que também viu que está a Sun que parece girassol, mas não é.
Então disse o companheiro esse, que isso quer dizer que já está boa a terra no campinho, que já se pode semear aí milho e feijão.
E então eu me preocupei, porque aí no campinho é onde vive o cavalo choco, e onde jogamos futebol. Bom, não jogamos porque ainda não completamos a equipe, mas praticamos e treinamos com muita vontade.
Então a autoridade pergunta à assembleia se concorda que se plante no campinho e se faça uma roça aí, ou se tem alguém que não concorda que diga sua palavra para ver como se faz.
Então toda a assembleia está em silencio e ninguém pede a palavra. E eu quero falar para dizer que não plantem no campinho, porque assim já não vamos poder jogar, ou treinar. Mas não sei como vou dizer, porque vejo que se necessita o alimento para ajudar a essas outras irmãs e irmãos.
E estou com a angustia porque ninguém diz nada e eu não tenho a ideia para convencer a assembleia, e vejo nos seus olhos da autoridade que já vai dizer que se ninguém tem outra palavra, se aprova que se plante no campinho.
E aí estou eu, procurando uma boa ideia e não encontro, e me dá raiva que não encontre boa palavra e com a raiva me saem as lágrimas, e não estou chorando, mas é por raiva de não saber.
E aí acordei e vim correndo. E no caminho mais raiva me deu pelo estupido sonho mau esse. Quem o mandou ou por que faz assim?”.
Conforme ia falando, o rosto de “Defesa Zapatista” ia reproduzindo em suas feições a dor e o desespero.
Eu fiquei calado, mas a menina ficou me olhando esperando o que eu ia dizer.
Ainda que eu percebi que “Defesa Zapatista” não havia vindo ao divã, nem mesmo para desabafar, estava buscando as palavras adequadas, porque entendi que a menina não chegou só a se esconder, também procurava respostas e eu, sou o subcomandante de aço inoxidável, o que, segundo o critério de “Defesa Zapatista”, tem o grave defeito de ser homem, mas ninguém é perfeito, e além do mais eu deixo que o gato-cachorro suba no teclado e arruíne os textos, as vezes tenho bolachas para compartilhar (que, para Defesa Zapatista significa que ela e seu animalzinho devorem todas as que eu gosto e as que não também, e me deixam o pacote vazio), e conto histórias onde ela e sua galera fazem travessuras e saem triunfantes.
Então estou apresentando como se diz o contexto, para que entendam que a menina na realidade não havia ido me contar um mau sonho, mas sim a me apresentar um problema.
Como havia estado revisando o baú das recordações que o defunto Sub Marcos me deixou em custodia, lembrei de haver visto algo que poderia servir. Fiz a “Defesa Zapatista” um sinal de que esperasse, e comecei a procurar e encontrei, debaixo dos desenhos que, quando esteve aqui no Cideci, trouxe John Berger, o que estava buscando. Os papeis estavam amassados, manchados de tabaco e humidade, mas a torpe letra do finado era ainda legível.
Coloquei fumo no cachimbo e acendi. Li quase em silencio, só fazendo alguns gestos e emitindo grunhidos incompreensíveis.
A menina me olhou em suspenso, esperando. O gato-cachorro havia deixado em paz o mouse do computador e, com as orelhas paradas, permanecia expectante.
Depois de me fazer o importante uns minutos, disse:
“Já está, não há problema. Encontrei a solução para seu pesadelo. Acontece que neste escrito o defunto Sub Marcos, que deus o tenha em sua santa gloria e a virgem Maria o encha de bendições, explica que os pesadelos são problemas e que se podem aliviar se se resolve o problema do pesadelo.
Então diz que os sonhos são as soluções para os pesadelos.
O que se tem que fazer é encontrar a solução e então já sai o sonho bom.
E que com isso você economiza um monte de dinheiro de psiquiatras, psicólogos, terapeutas e antiácidos. Ok, isso não vem ao caso.
E neste outro escrito, diz que o problema não é só saber o que é o urgente e o que é o importante.
O urgente é o que se tem que fazer já, e o importante é como, por exemplo, o que se sabe que se deve fazer.
Por exemplo, no teu caso do teu mau sonho que você me contou, o urgente é que os companheiros têm que produzir mais alimentos; e o importante é que não se perda o lugar onde se joga.
Então é um problema grave porque se se cuida o lugar para jogar, então não se semeia e há fome; e se se semeia, então já não há onde jogar.”
“Defesa Zapatista” assentia convencida ao que lhe ia dizendo. Eu segui:
“Então diz aqui o finado que isso se chama “opção excludente”, ou seja, que ou se faz uma coisa ou se faz outra, mas não se pode fazer as duas. O Sub Marcos diz que quase sempre isso é falso, ou seja, que não é a força que uma coisa ou outra, mas sim que se pode imaginar outra coisa diferente. E põe o exemplo dos povos originários, ou seja, os indígenas.
Diz: “Por exemplo, os povos originários, desde séculos, todo o tempo fazem ao mesmo tempo as duas coisas, o urgente e o importante. O urgente é sobreviver, ou seja, não morrer, e o importante é viver. E o resolvem com resistência e rebeldia, ou seja, que se resistem a morrer e ao mesmo tempo criam, com a rebeldia, outra forma de viver. Então diz que sempre que se possa, temos que pensar em criar outra coisa.”
Deixei os papeis e me dirigi a “Defesa Zapatista”:
“Então o que eu acho que você pode fazer no teu problema do mau sonho, é explicar à assembleia o que é urgente e o que é importante.
Ou seja, que as duas partes têm boa ideia, mas que se escolhem uma vão prejudicar a outra.
E então explica isso para a assembleia que não é a força que uma coisa ou outra coisa, mas sim que se tem que pensar em outra coisa, algo diferente, mas que fiquem bem as duas coisas.
E então não é que se resolva o problema da assembleia nem o seu problema, senão que já é outro problema.
E no novo problema, têm que pensar as duas, ou seja, a assembleia e você.”
Todo o tempo, a menina havia estado sentada, quieta, com sua mãozinha apoiando seu queixo, pondo atenção.
Contra seu costume, o gato-cachorro também havia estado quieto.
“Defesa Zapatista” ficou em silencio, olhando ao chão fixamente.
Não sei muito do que passa na cabeça de uma menina. De um menino sim, porque talvez não amadureci a pesar dos quilômetros percorridos. Mas as meninas, mesmo já tendo idade, continuam sendo um mistério que talvez as ciências possam algum dia resolver.
De repente, “Defesa Zapatista” olhou o Gato-cachorro, e o mencionado, por sua vez, olhou para ela.
O olhar mutuo durou só uns segundos, e o Gato-cachorro começou a saltar, a ladrar e a miar. A carinha da menina se iluminou e quase gritou:
“Sim, o Gato-cachorro!” e começou a pular e a dançar junto com o mencionado.
Eu não só fiz cara de que não entendia nada, de verdade não compreendia por que faziam isso. Mas, resignado, esperei a que “Defesa Zapatista” e o Gato-cachorro se acalmassem, o que não ocorreu até que passou uns minutos que me pareceram eternos.
Ao fim se deteve a algaravia e, ainda agitada, a menina me explicou:
“É o Gato-cachorro, Sub! Tenho que levar o Gato-cachorro ao meu mau sonho e tenho que levar à assembleia e ele vai me ajudar e então já vai ser um bom sonho.
Aqui estava a solução do problema, mas eu não havia estudado.
É o Gato-cachorro, sempre foi o Gato-cachorro.”
Acho que minha cara de “What!” deve ter sido muito evidente, porque “Defesa Zapatista” se sentiu obrigada a me esclarecer:
“Vamos ver te explico Sub: o Gato-cachorro é gato?, pois não. É cachorro?, tampouco. Então não é nem uma coisa nem outra, então é outra coisa, é um gato-cachorro. Se mostro o Gato-cachorro para a assembleia, claro vão ver que se tem que fazer outra cosa, que fiquem contentes ambos dois mutuamente de acordo”.
Eu não conseguia entender como a assembleia ia dar, como se diz, o “salto epistemológico” dessa coisa, ou o que seja o Gato-cachorro, e a disjuntiva entre o campinho para jogar ou o campinho para semear. Mas parece que para “Defesa Zapatista” isso não lhe preocupava.
No outro dia, caminho ao povoado, passei pelo campinho. A noite já começava a nascer do chão e mesmo assim continuava o som daqueles que esboçam no muro. Ainda havia luz suficiente, porque “Defesa Zapatista” estava no campinho, reunida com um grupo no qual reconheci ao velho cavalo choco que a acompanha as vezes, o Gato-cachorro, e o Pedrito. Havia também dois homens, um baixo e outro alto, os quais não identifiquei e supus que eram da Sexta e que a menina os estava tratando de incorporar à sua sempre incompleta equipe.
Me viu de longe a menina e me cumprimentou agitando a mão. Correspondi o cumprimento, percebendo que “Defesa Zapatista” havia resolvido o problema porque ria e corria de um lado a outro, mostrando ao grupo onde deveriam se colocar em um dispositivo que me pareceu a figura de um caracol.
Segui meu caminho, lembrando o final daquele dia de lágrimas, quando já sorridente e com a carinha iluminada, “Defesa Zapatista” se despediu:
“Já vou embora, Sub, tenho que ir”.
“Y o que você vai fazer?”, lhe preguntei.
Já estava indo quando me gritou: “Vou sonhar”.
Enquanto esperava a que se reunissem as companheiras e companheiros para a conversa que eu tinha que dar, a noite chegou com seus próprios passos e sons.
Pensei então que talvez o finado Sub Marcos tivesse gostado de estar presente no sonho de “Defesa Zapatista” e assim saber como argumentou a menina e qual foi a decisão da assembleia.
Ou talvez esteve aí. Porque, ao menos em estas terras, os mortos andam de um lado a outro. Com nós riem e choram, com nós lutam, com nós vivem.
Muito obrigado.
Desde o CIDECI-Unitierra, San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, México.
Sub Galeano.
México, janeiro de 2017.
No hay comentarios todavía.
RSS para comentarios de este artículo.