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Palabra del Ejército Zapatista de Liberación Nacional

Ene092018

Participação da Comissão Sexta do dia 27 de dezembro de 2017 no ConCiências pela Humanidade. SupGaleano. Depende

DEPENDE…

27 de dezembro de 2017.

  Bom dia, tarde, noite, madrugada.

  Queremos agradecer-lhes aos que assistem, seja aqui no CIDECI, seja a distância em geografia e calendário, a este segundo Encontro de ConCiências pela Humanidade, cujo tema central, se supõe que é “as ciências frente ao muro”.

  Celebramos que tenham decidido participar, seja como expositor ou como escutas e videntes,

  Meu nome é SupGaleano e agora não vou falar de ciência, nem de arte, nem de política, nem vou contar um cento.

  Ao contrário, quero falar de um crime e de suas possíveis analises ou explicações.

  E não um crime qualquer, mas sim um crime que rompe os calendários e redefine o tempo; que amalgama o criminoso e a vítima com a cena do crime.

  Um crime, digo.  Mas… ¿Um crime em curso?  ¿Um já perpetrado?  ¿Um por cometer-se?  ¿e quem é a vítima?  ¿Quem o criminoso?  ¿Qual é a cena do crime?

  Talvez alguma, algum, algumoa, concorde comigo que os crimes são já parte da realidade que se padece no México, e em qualquer parte do mundo.

  Crimes de gênero ou feminicidios, de homofobia, racistas, laborais, ideológicos, religiosos, pela idade, pela aparência, por negócios, por omissão, pela cor, e assim.

  Em resumo: um território encharcado em sangue.  Tanto, que as vítimas já não têm nome, são só números, índices estatísticos, notas de interiores o de recheio nos meios de comunicação.  Inclusive quando o sangue é daqueles que, como el@s, trabalham de comunicadores,

  Milhares de crimes com minúsculas, que se alimentam de um crime maior,

  A aberração é tão grande, que os familiares das vítimas têm que lutar já não pela vida de sus ausentes, mas para que não moram duas vezes: una de morte mortal e a outra de morte de memória.

  Para não ir muito longe, no México, já se pode dizer que alguém “morreu de morte natural” quando é vítima da violência.

  Cada atividade, cada passo, cada instante de uma vida outrora normal, agora transcorre na incertidão…

  ¿Chegarei com vida ao trabalho, a casa, a escola, ao dia seguinte?  ¿Encontraram meu corpo?  ¿Estará completo?  ¿Dirão que eu o provoquei e me faram responsável de minha ausência?  ¿Terão meus próximos que lutar por encontrar-me, por lembrar-me?  Minha família, minhas amizades, as pessoas que me conhecem, quem não me conhece, ¿dedicaram um pensamento a mi morte, um tuit, um comentário em voz baixa, uma lágrima?  ¿e depois?  ¿Continuarão adiante?  ¿Guardarão silêncio?  ¿Como relacionarão quando não se diga que assassinaram uma mulher, senão que uma mulher morreu?  ¿Qual sua avaliação quando a nota vermelha detalhe minha roupa, a hora, o lugar?  ¿Chegará minha morte ao mínimo necessário para que os governantes decretem uma alerta de gênero?  ¿Meu assassino, sim, em masculino, será castigado?  ¿Quem explicará que o crime que me atacou por ser mulher?  Sim, jovem, criança, adulta, madura, anciã, bonita, feia, magra, gorda, alta, baixa, sempre mulher.

  ¿Por que não me advertiram que nascer e crescer mulher em este calendário, em qualquer geografia, reduzia minha esperança de vida e que cada maldito minuto ia ter que lutar, já não só para ser valorizada e respeitada por meus méritos, grandes ou pequenos, para ter uma retribuição justa por meu trabalho, para ter oportunidades de estudo, de trabalho, de relação, para ser feliz ou infeliz, segundo fosse arrastando-me ou caminhando ou correndo pelos calendários, para ir tirando pois, ou como cada quem diga viver; não, acontece que também tenho que lutar para que não me matem, não uma, duas, três, cem, milhares de vezes?

  Porque me mata o homem que me mata, e me mata quem ignora minha morte, a esconde, a maquia, a máscara, a suja com seu maldizer (“se vestiu provocativamente”, “estava bebendo”, “estava numa balada”, “andava de noite”, “andava sozinha”) ocultando que meu delito é viver.  Assim simplesmente, viver.  Sem importar minha idade, meu credo, minha cor, minha posição política, minhas ideias, meus sonhos e meus pesadelos.  Meu assassino não se decidiu porque eu fosse votar o abster-me, porque votasse vermelho ou verde ou azul ou café ou amarelo ou independente ou na verdade é que nem título eleitoral tenho.  Também não foi a idade seu motivo: sou criança, jovem, adulta, madura, anciã.  Me assassinou porque sou mulher.

  Assim estamos, escute.  Aceitamos que a explicação de um crime de gênero, de assassinato de uma mulher, do feminicidio, seja essa: é que era mulher, quem manda, ela que procurou, e que continue a caça.  Porque o silencio é cumplicidade, e a cumplicidade é a celebração do crime.  Só uma mudança de direcionamento: do crime a normalidade.  Brindemos porque é este o sistema que culmina a história, onde a humanidade alcança seu máximo desenvolvimento, onde o progresso e o bem-estar podem ser disfrutados por todo aquele que trabalhe e se esforce.

  Isso é o sistema capitalista, escute, o sistema onde assassinar uma mulher é parte da vida diária, da morte cotidiana, do terror assumindo sua identidade de gênero.

  Ou não?  Ou tudo depende de quem explique minha morte?  Ou já não importa?  ¿já nem sequer merece uma explicação?  Minha morte é como a chuva que faz mais lento o tráfego e que um, uma, umoa, padece com o tédio de quem chegará tarde ao próximo assassinato como se chega tarde ao próximo semáforo?  vixe! Outra vez vermelho, outra morta, outra assassinada, outro atraso.

  Dizia o finado SupMarcos que, para ser levados em conta, os indígenas tinham que morrer aos milhares.  Que se eram uns poucos, normal. Se eram umas dezenas, “é parte da sua natureza bárbara”, “sintoma do atraso cultural”, “o governo deve cumprir com a dívida histórica com os mais desprotegidos”.  Sí eram centenas, “ah, as destraças naturais, que dó!”.  Se já eram milhares, então sim alguém preguntava “o que está acontecendo? ¿por quê?”

  Assim que falta preguntar: Quantas mulheres assassinadas se necessitam para que nos perguntemos o que está acontecendo e por quê?  Quem é o responsável do crime?  Quem é a vítima?  Qual é o motivo?

  Ou vamos esperar o próximo escândalo nas redes sociais?  Serio?  Onde antes havia a esmola do lamento ou uma moeda, agora um tuit?

  Faz pouco tempo, nessa fonte perene de sabedoria, tolerância e preocupação pelo bem comum que é a rede social “twiter”, um usuário reprendia a uma usuária que condenava o assassinato de uma mulher (outra a mais) como feminicidio.  O usuário em questão lhe dizia, palavras mais, palavras menos: “Não é feminicidio porque ela não era feminista, era só uma mulher”,  E rematava assim “vocês as feminazis não respeitam as demais mulheres e querem estender seu ódio a todas”.  Imagino que a réplica que recebeu o usuário fui do tipo “você não pode acessar a esta conta, porque foi bloqueado porque a usuária é alérgica a estupidez”.

-*-

  Um crime de gênero.  Poderíamos tentar uma explicação, uma hipótese.  Poderíamos, por exemplo, perguntar ao assassino por que cometeu esse crime.

  Lhes adianto que as justificações serão muitas, mas sempre a mesma.  A reposta inconfessável do homem sempre será: “porque posso fazer, já viram outros, outras, dar-me a razão, o motivo”.

  E assim, mas tudo depende.

  Por exemplo:

  Faz uns dias, a agencia de notícias Apro, informou: “Ao deplorar os feminicidios no país, o cardeal Juan Sandoval Íñiguez fez referência a um presunto experimento em Juárez, Chihuahua, onde um policial vestido de civil a bordo de um auto de luxo “conquistava” a mulheres para levá-las a presidência municipal, onde as reprendiam por seu comportamento dizendo-lhes “entram no carro com qualquer um, por isso as matam”.

  Em entrevista para o Canal 44, depois de assistir a uma conversa sobre a Coparmex, o também bispo emérito de Guadalajara disse hoje que o alarmante incremento dos feminicidios no país se atribui a “imprudência das mulheres”.

“De parte da mulher pode haver quando menos imprudência. Com qualquer que sai por aí bem vestido, se comprometem, se seduzem”, disse Sandoval Iñiguez para em seguida fazer referência ao suposto experimento realizado em Ciudad Juárez.

  Como podem apreciar, aqui nem sequer se menciona aos assassinos.  A responsável de seu assassinato é a mulher e sua “natural” imprudência.

  Oh, eu sei.  Vocês se preguntam por que toda esta peroração sobre os feminicidios, se aqui estamos para falar das ciências e do muro.

  Bom, em minha defesa alego que estou descrevendo uma parte desse muro.  E o primeiro que ressalta nele, é um estendido grafite, que abarca os 5 continentes, onde o sangue ocre das mulheres vítimas da violência colore a palavra “CULPADO”.

  Claro, depende.  Há quem vê os grandes avances científicos e tecnológicos, as urbes soberbas, as douradas luzes refletidas nos arranha-céus.

  E nós aqui de néscios e irresponsáveis, escutando que estamos frente a um crime.  O mais grande, profundo, estendido e terrível na história da humanidade.  Um crime feito sistema.

  Mas eu esclareci, ao início, que não ia falar de ciência, nem de arte, nem de política, nem ia contar um conto.  Disse pontualmente que ia falar de um crime.  Assim que fica por sua conta de você continua escutando, lendo ou dando click no ícone de recarga porque a transmissão no stream já caiu e a tela do computador, do tablete, do celular, está congelada nessa palavra que bem pode resumir a explicação que o sistema da aos assassinatos de mulheres: “CULPADO”.

  E enquanto a transmissão se reinicia, viro e olho para cima para ver e escutar si alguém está falando disso, desses crimes.  Mas nada. Talvez falha minha conexão e em realidade se se está falando disso e se estão propondo planos, estratégias, tácticas para acabar com esse pesadelo.

  E então, enquanto a transmissão se restabelece, você, nós, escutamos as palavras do poeta Juan Bañuelos.  É apenas um eco o som de sua voz, porque é de faz dez anos, na ocasião da homenagem que recebeu no Encontro de poetas do mundo latino, em 2007.  Em sua voz não houve celebração pelo prêmio.  Houve, em troca, um ligeiro estremecer de dor, de indignação, de raiva.  Agora se escuta:

  “Mas o que quero dizer, concretamente, é o seguinte: no dia 22 de dezembro de 1997 se perpetrou o assassinato de 45 indígenas na comunidade de Acteal, que está no município de San Pedro Chenalhó, no estado de Chiapas. A mais sangrenta de muitas agressões que têm sofrido: a sanha com que mulheres, crianças e homens foram assassinados por grupos paramilitares.  O governo quis explicar que se tratava de “lutas intertribais”.  Não por acaso, também, que a maioria dos mortos tenham sido mulheres nem que o estupro realizado pelos grupos paramilitares fosse para semear o terror nas comunidades e para atacar os projetos autonômicos.

  Desde a fundação do grupo indígena as Abelhas a resposta foi o estupro tumultuaria, em dezembro de 1992, contra as esposas dos fundadores, uma delas com sete meses de gravidez. O massacre de Acteal significa que matando as mulheres se destrói um símbolo da resistência: o fim é “matar a semente”, esse foi o grito dos paramilitares esse 22 de dezembro: que não se multipliquem mais os índios. O assassinato em Acteal não é o feitio de uma violência louca nem de vinganças tribais ou pessoais. Que não se tenha investigado a fundo e se identifique aos culpáveis em estes 10 anos dos fatos é responsabilidade somente dos grupos de poder estatais e dos presidentes do México que temos tido. Não se tem resolvido nada.”

  Imagino que há uma pausa, talvez para esclarecer a voz, talvez para tratar de controlar a raiva:

  “No dia seguinte depois do 22 de dezembro de 1997 fui enviado a Acteal como membro da Conai (Comisión Nacional de Intermediación por la Paz) para investigar o que havia sucedido. A impressão foi espantosa: encontramos roupas ensanguentadas de crianças e mulheres nos ramos dos arbustos, e em uma covinha onde tentaram esconder-se. Alguns dos sobreviventes deram seu testemunho contando pormenores sobre como foram massacradas algumas mulheres ao abrir seu ventre (quatro estavam gravidas) e extrair-lhes a sus nonatos, com tal sanha que sintetiza uma política de extermínio.

Micaela, uma menina de 11 anos, tem muito medo. Ela nos conta que desde cedo está com sua mãe rezando e brincando com seus irmãozinhos para que não façam arte. Há várias mulheres na ermida. Às 11 da manhã começa o tiroteio, as crianças começam a chorar, homens e mulheres começam a correr, e a outros os alcança a bala aí mesmo; um disparo lhe atingiu pelas costas a mãe de Micaela. A encontraram pelo choro das duas crianças que logo foram assassinadas. Micaela se salvou porque pensaram que ela estava morta. Tinha muito medo e foi se esconder a beira do córrego. Aí viu como os paramilitares voltaram com facões na mão; se riam, se divertiam, desvestiram as mulheres mortas e lhes cortaram os seios. A uma lhe enfiaram um pau entre as pernas e as gravidas lhes abriram o ventre e tiraram seus filhinhos e brincaram com eles: os jogavam de facão a facão. Depois foram embora gritando, gritando e gritando. Micaela foi tomada da mão por seu tio Antonio para ir procurar seus primos ou pessoas conhecidas que pudessem estar vivas entre os mortos. Ela continua relatando: “resgatamos dois pequenos que estavam junto a sua mãe morta; o menino estava com a perna destroçada, outra menina estava com o crâneo desbaratado e se debatia tratando de aferrar-se a vida. Depois do genocídio, muitos não puderam combater a tristeza: Marcela e Juana perderam a razão, já não falam, só emitem monossílabas com o ruído de helicópteros militares que sobrevoam a comunidade”.

  Juan Bañuelos se desculpa.  Sabe que sua palavra soará anacrónica para alguns dos assistentes (de então e de agora):

  “Que o público desta noite me perdoe se nesta festa da palavra com poetas de diferentes países tenho que abordar a matança espantosa de Acteal, faz 10 anos, ainda sem nenhuma solução, mas é que eu nasci em Chiapas e fui membro da ex Conai e não posso ficar calado.

  A alguns lhes parecerei radical por exigir mudanças profundas no meu país; contudo, lhes respondo com um pensamento de José Martí, o grande poeta da América: “Radical não é mais que isso: o que vai as raízes. Não se chama de radical aquele que não vê as coisas a fundo. Nem se chama homem aquele que não ajude a segurança e felicidade dos demais homens”, porque há que dizer que “pátria é humanidade”. Pelo mesmo, e por tanto, esta homenagem a minha pessoa a transformo, a mudo e a transfiro a memória dos massacrados em Acteal.”

  Juan Bañuelos, poeta ao fim, lê o poema da poetiza Xuaka´ Utz´utz´Ni´, intitulado “Para que não venha o Exército”:

Escuta, sagrado relâmpago,

escuta, santo cerro,

escuta, sagrado trovão,

escuta, sagrada cova:

Viemos despertar tua consciência.

Viemos despertar teu coração,

para que faça disparar teu rifle,

para que dispare teu canhão,

para que feche o caminho a esses homens.

Mesmo que venham na noite.

Mesmo que venham ao amanhecer.

Mesmo que venham trazendo armas.

Que não cheguem a nos bater.

Que não cheguem a nos torturar.

Que não cheguem a nos violar

em nossas casas, em nossos lares.

Pai do cerro Huitepec, mãe do cerro Huitepec,

Pai da cova branca, mãe da cova branca,

Pai do cerro San Cristóbal, me do cerro San Cristóbal:

Que não entrem em tuas terras, grande patrão.

Que se congelem seus rifles, que se congelem seus revolveres.

Kajval, aceita este ramo de flores.

Aceita esta oferenda de folhas, aceita esta oferenda de fumaça,

Sagrado pai de Chaklajún, sagrada mãe de Chaklajún.

  Juan Bañuelos termina sua intervenção dizendo:

  “Exigimos juízo sumario para o norte-americano ex presidente Zedillo e seus cumplices”.

  ¿Lhe aplaudem ou não?  Não sabemos. A gravação se corta abruptamente com a palavra “cumplices”.  Em uma reunião de poesia, um artista da palavra decidiu falar de um crime y, em vez de agradecer a homenagem, demandaram verdade e justiça.  Juan Bañuelos não sabe, porque a morte natural o deixou sem palavras faz algumas luas, mas os assassinos materiais e intelectuais desse crime estão livres com a cumplicidade, então e agora, dos líderes do mexicano Partido Encuentro Social.

  E faz umas horas acaba de falecer, em paz e “com os auxílios espirituais da santa mãe igreja”, um dos autores intelectuais dessa matança: o general Mario Renán Castillo Fernández.

  E onde digo Acteal, vocês podem, ajustando seu calendário, dizer agora “Chalchihuitán” ou “Chenalhó”.  E agregar a variável da disputa pelo próximo governo de Chiapas entre o PRI-vermelho e o PRI-verde.  Eles porão os candidatos, e seus militantes indígenas põem já os deslocados e os mortos.

  Disse antes que ninguém estava falando dos crimes contra as mulheres.  Bom, depende de onde se dirijam o ouvido e o olhar.  Porque há uma mulher que se chama Guadalupe e lhe dizem “Lupita”.  Tinha 10 anos quando foi a matança de Acteal e teve que viver esse horror e morrê-lo também com seus seres queridos.  Agora Lupita é concelheira do Concelho Indígena de Governo e, junto com a porta-voz desse Concelho, Marichuy, anda os caminhos deste país e conta essa história.

  Lupita fala com outras mulheres.  Algumas são como ela, outras não.  A umas e a outras, lhes fala e não diz só: “veja-se nesta história porque já é também a sua”.  Também lhes diz: “escute-se, resiste, não se rendas, não se vendas, não claudique.  Não espere que o terror entre na sua casa, sua rua, sua escola, seu trabalho.”

  Nem Lupita nem a porta-voz caminham a sós.  Outras concelheiras, indígenas como elas, mulheres como elas, trabalhadoras como elas, pobres como elas, mães como elas, esposas como elas, filhas como elas, avós como elas, irmãs como elas, organizadas como elas, rebeldes como elas, caminham e falam em outras partes deste crime clamado “México”.

  Não há luxos para elas, nem aviões privados, nem jornalistas assignados.  Dizem alguns que estão juntando assinaturas para que a porta-voz Marichuy seja candidata Independiente a presidência da república.  Não sei se estão juntando assinaturas. Elas dizem que estão juntando dores, raivas, indignações, e que não há uma aplicação cibernética para coletar isso, nem celular de gama baixa, media, alta que suporte esses terabytes.  Só têm seu ouvido, seu coração.  Sua palavra é invariavelmente a mesma: “organização”, “resistência”, “rebeldia”.

  Não dizem, mas assim dizem: “não tenha lástima de mim, não te peço esmola, só te digo: veja-se ao ver-me, e ao escutar-me, escute-se”.

  Então eu pergunto a vocês, aqueles que assistem, escutam, leem, olham: “¿merece o Concelho Indígena de Governo a oportunidade de percorrer mais lugares, de falar com mais pessoas, de escutar mais dores e, em lugar de oferecer promessas, programas de governo e gabinetes, também denunciar um crime, partilhar sua explicação dele e fazer o chamado a acabar com o criminoso?  Não o acolher, não o matizar, não o maquiar, não o reciclar, não o perdoar, não o esquecer.  Não, acabar com ele, destrui-lo, desaparecê-lo.

  A resposta a essa pergunta, já sabemos, depende de quem, de onde, de como.

-*-

  Falei de uma parte do crime.  Porque, como disse ao princípio, não vou falar de ciência, nem de arte, nem de política, nem vou contar um conto.  Contudo, ao falar de crime falo também das explicações que dele se dão, e a explicação deste horror cotidiano varia.  Depende de onde se explica e depende de quem percebe ele.

  Fiel a seu esquema e modo, o Partido Revolucionario Institucional de Acteal, renovou sua persistência delitiva neste sexênio.  Não basta a corrupção ambiciosa, a ineficácia administrativa, a torpeza diplomática, a frivolidade como estilo de governo.

  Não, o PRI necessita sempre um crime aterrador que o mantenha nos parâmetros que lhe dão identidade, cor, vocação e projeto.

  E, como em Acteal, as mesmas canetas que arquivaram em “conflito intertribal” o assassinato de mulheres, crianças e homens desarmados, para Ayotzinapa construíram a tese do “enfrentamento intertraficantes”.

  Curiosa essa definição de “enfrentamento” que prova os tribunais jurídicos e midiáticos do Poder: uma das partes está armada e a outra indefesa, más se trata de um “enfrentamento”.

  No esquema governamental, um esgotado procurador geral de justiça declarou que os queimaram e pronto, e rezar para que não aconteça de novo.

  Nese tempo da chamada “verdade histórica”, um grupo de científicos demostrou que não era possível essa explicação.  Mas o supremo governo se manteve em seu esquema validado pelos grandes meios de comunicação.

  A desaparição forçada dos jovens estudantes da Escola Normal de Ayotzinapa, no estado de Guerrero, continua sendo atribuída a um grupo narcotraficante rival.  E em torno a isso, se constrói um esquema de entendimento da realidade.

  O PRI feito governo sustenta, com um cinismo arrepiante, que tudo o que o exibe como o é, ou seja, um jagunço com gabinete graduado no estrangeiro, é sempre atribuível ao Satã em turno: o crime organizado em macomunagem com um grupo de cientistas perversos.

  O governo tricolor confessa assim, com uma imbecilidade blindada, que não é responsável de nada porque ele é, em essência, o crime desorganizado.

  Mas, como em Acteal, em Ayotzinapa há quem não se resigna, quem não se rende, quem não se vende, quem não claudica, e, com terno empenho, persiste na demanda de verdade e justiça.

-*-

  Acho que há uma coisa em neurobiologia que se chama “a síndrome do membro fantasma”.  Não me deem ouvidos, melhor acudam aqueles que sabem disso de neurociência, mas acho que consiste em ter percepção de sensações de que um membro do corpo humano que foi amputado ainda esteja conectado al corpo.  Ou seja, alguém que já não tem a mão, ou o braço, ou a perna, ou o olho, mas se “sente” que ainda o tem.

  E, talvez, é um supositório (suposição), quando dizemos “foi o Estado”, “Estado Falido” ou “Narco Estado”, estamos referendo-nos a uma ausência.  E o que contemplamos e daquilo que no queixamos não é senão uma mostra da “síndrome do membro fantasma”.  O Estado Nacional foi amputado na etapa atual do capitalismo e o que percebemos es o eco de sua existência.  Já não há Estado, o que há é uma turma de criminosos mantida por um grupo armado que se amparará na Ley de Seguridad Interior para que a dor e a raiva não faltem nas mesas cotidianas de México.

   Faz uns dias, o senhor Enrique Peña Nieto declarou, palavras mais, palavras menos, que 2017 fui um bom ano para o México.  Ao escutá-lo dizer isso, a gente se pregunta se não lhe amputaram não só a vergonha e a decência, mas também o cérebro, e reflete a síndrome do membro fantasma: já não tem cérebro, mas atua como se o tivesse.

-*-

  “Tudo depende de um ponto de vista”, nos dizem as mil línguas do Poder, “não há uma realidade conhecível, senão múltiplas realidades que dependem de esquemas diferentes”.

  Então eu venho lhes preguntar:

  Se há um crime, sua explicação depende de um ponto de vista ou podemos analisá-lo com a ajuda das ciências?

  Obrigado pelo ouvido, obrigado pelo olhar, e obrigado, sobre tudo, por sua impopular prática científica.

Desde o CIDECI-UniTierra, Chiapas.

SupGaleano.

México, dezembro de 2017.

 

DO CADERNO DE NOTAS DO GATO-CACHORRO:

DEPENDE.

  Numa comunidade zapatista, na sala de aula, a promotora de educação pregunta a menina autodenominada “Defesa Zapatista”, se fez a tarefa.

  No embornal da menina se pode ver o rabo do gato-cachorro, provavelmente resguardado do frio que veste essa manhã.

  Defesa Zapatista se põe de pé e diz:

  “Isso depende professora

  “Como que “isso depende”? Não entendo”, pergunta a professora quase como um reflexo.

  Defesa Zapatista suspira resignada, pensando em por dentro “fazer o que, tenho que lhe dar sua aula política outra volta a professora

  “Sim, por exemplo”, diz a menina enquanto olha de esguelha se a sombra da Ceiba lhe indica a hora da saída, “aí você sabe que temos uma companheira que se chama doutora e seu “sobnome” é margarita.

  “sobnome”, trata de corrigir inutilmente a promotora, “Se diz “sobrenome”

  Isso mesmo”, replica Defesa Zapatista que não está para demasias, “então se chama doutora, mas há muitas que são doutoras, ou doutores, dizem.  Porque por exemplo está o Doc, que uma vez o SupMoy lhe perguntou se sabia curar e o Doc disse que não e então o SupMoy fez sua cara assim, ou seja, o SupMoy faz sua cara assim quando se embravece.  E então o SupMoy disse “mas então você não é doutor”.  E então o Doc olhou par o SupGaleano como pedindo ajuda, mas o SupGaleano começou a fumar seu cachimbo, ou seja, fez como se não fosse com ele.  E então eu expliquei ao SupMoy que é Doc mas lhe falta o “sobnome”, ou seja, é o Doc Raimundo, ou seja, que não sabe curar com medicamento, senão que diz “animo” toda hora mesmo que esteja muito triste a situação, mesmo que lhe apliquem injeção diz: “animo”.

  Bom, daí que um dia veio a Doutora Margarita, que nem sempre se chama “margarita”, porque as vezes es “margara”, dependendo se te dá comprimido ou xarope ou injeção.

  Bom, daí que me levaram com a doutora, para que me examinasse, assim disse minhas mamães.  Pois, aí estou e então e vejo que aí está como se diz a arma criminosa, umas injeções que tinha a doutora na sua mesa, e me vem ao pensamento que vou ter dar aula política a doutora, para que entenda a luta.

  E então disse a doutora que temos que ajudar-nos como mulheres que somos e que não devemos fazermos mal entre mulheres.  E a doutora fez cara de que entendia, mas eu vi claramente nos seus olhos que não entendeu nada.  E então lhe disse que por exemplo as injeções são um mal ou um bem, depende.  Por exemplo, são um mal se se aplica em uma menina, porque, vamos ver, você acha que vou poder chutar a bola se me doe a perna porque causa da injeção? Não, não é?

  Más por exemplo as injeções são um bem se se aplica por exemplo no Pedrinho, que o muito maldito sempre está zombando de mim, que as mulheres não sabemos futebol e que somos “langorosas”.

  Eu não sei o que é “langorosas” mas rápido vi que o Pedrinho não está respeitando como mulheres que somos e aí lhe dei um bolacha de langorosa para que não ande mal falando.

  Bom, daí que a doutora quis me dar a aula política de que as injeções servem sim, mas depende, lhe disse.  E então disse que como mulheres que somos temos que nos ajudar e nada de injeções as meninas, só aos meninos e se choram, pois, uma bolacha para que tenham por que e não porque lhes estão fazendo um bem com a injeção.  E então expliquei para a doutora que para as meninas, só comprimidos e xaropes, mas só se o xarope não está amargo.  Se está amargo deve ter uma etiqueta que diga “só para meninos”.

  A doutora só ria, ou seja, que acho que não entendeu bem a aula política porque logo disse às minhas mamães que já era hora de tomar a vacina de não sei que.  você acha que vai avançar a luta das mulheres que somos se a doutora não entende?  Mas, nada, me aplicaram a injeção, e doeu muito e andei manca muito tempo, mas não chorei… bom, chorei um pouco, mas foi porque fiquei com raiva porque nos falta mais aula política para a luta.  E já não fui treinar, assim que logo não se completa o time rápido, pois, aí está que é culpa de não entender a política.

  Bom, daí que fui conversar com o senhor esse que se chama “cherloc” e seu sobnome é “Jol-mes” (nota: em tzeltal, “jol-mes” quer dizer cabeça de vassoura e é uma planta que se usa para fazer vassoura para varrer as casas), é um pouco esquisito que se chame assim, mas acho que é porque ele realmente tem cabeça de vassoura.  Bom, esse Jol-mes anda acompanhado de um tal de Doutor e seu sobnome é Waj-tson, ou seja, cabelo de “tortilla”, e coitado, sempre faz cara de quem não entende e rapidamente e se nota que ele não gosta do gato-cachorro porque ao passar perto dele dá volta.  Bom, daí que outro dia te conto isso professora, porque senão vou levar todo o dia na explicação política.

  Então, professora, se você me pergunta se fiz a tarefa  não está bem a pergunta porque, como já expliquei, depende.  Por exemplo, “Sup” é um nome, mas falta o subnome.

  Porque aí está que si o subnome é Moy, agora sim já era, porque o SupMoy não ajuda e me diz que tenho que obedecer às minhas mamães.

  Mas por exemplo se o subnome é “Galeano”, aí é diferente porque o SupGaleano sim ajuda de resistência e rebeldia, e deixa que o gato-cachorro durma no seu computador e comemos os mantecados que o ele rouba da cooperativa.

  Claro o SupGaleano diz que não os rouba, diz que os pega emprestados, mas eu sei que não os devolve.  Como é que os devolve se já os engolimos com o gato-cachorro aqui presente? (o gato-cachorro balança o rabo).

  Bom, daí que eu perguntei ao SupGaleano se já lhe aplicaram injeções e ele me disse que na comandância está proibido dizer palavrões.

  Ou seja, que eu entendi que “injeções” é uma má palavra para o SupGaleano, mas a doutora Margarita diz que não é má palavra.  Aí se pode ver claramente que as injeções são más palavras dependendo se são aplicadas em você ou no Pedrinho, porque o muito maldito foi contar que eu lhe dei uma bolacha e que era violência de gênero, você acredita que assim disse?  Eu expliquei às minhas mamães que só me defendi porque o Pedrinho me insultou, ou seja, que como se diz lhe apliquei a equidade de gênero.  E minhas mamães, ummm, como te explico?, ainda não entendem bem a luta das mulheres que somos e me castigaram que não vou poder ir trenar e então eu disse que fica por sua conta si não completávamos o time, mas elas nada de time nem nada, que tenho que fazer a tarefa.

  Então eu saí para fazer a tarefa e levei meu caderno de notas só que o gato-cachorro, aqui presente, deitou sobre o caderno e anda sai, você acha que consegui tirar o gato-cachorro si já está dormindo?  Nuncamente.  Só de aproximar um pouco ele já faz seu grunhido esse que na linguagem de gato-cachorro quer dizer “se mexer comigo, você vai morrer”.  Então eu pensei que para que vou morrer se ainda sou criança e falta que cresça.  E o SupGaleano me contou um dia que não é bom morrer, que é muito chato estar morto, que não passa o dia.

  E um dia o SupGaleano estava vendo uns vídeos de umas pessoas que não se vê bem quem são, mas estão explicando que lutam para que se respeite seu jeito.  E eu perguntei ao Sup se são homens ou mulheres, e o Sup me respondeu: “Depende”.  Ou seja, que o caso é que não basta com o que se vê ou se escuta, senão que temos que levar em conta muitas coisas e que temos que escutar, assim disse o Sup.  Porque, por exemplo, se me olham, pensam que sou uma menina que estou assim atoa, que não estou pensando nada.  Mas se me preguntam, primeiro digo que me chamo “Defesa” e meu sobnome é “Zapatista”, e penso muitas coisas.  Ou seja, depende.”

  Durante todo o desfecho da menina, a promotora de educação faz cara de resignação.  Mas respira aliviada quando vê que o Pedrinho, sentado adiante, levanta a mão com insistência.

  A professora aproveita um folego da menina, e diz:

  “Fala Pedrinho, o que você quer dizer”

  O Pedrinho se levanta e alega:

  “Acho que Defesa Zapatista não entendeu o que quis dizer, porque quando alguém diz “langorosas”, depende do contexto…”

  A menina olhou para o Pedrinho com cara de “você me paga maldito”.

  A professora já se resignava a escutar um dos esbanjamentos de erudição do Pedrinho, quando soou o sino de saída.

  Todos saíram correndo, com Defesa Zapatista na frente.

  Lá fora, a menina tirou o gato-cachorro do embornal e lhe disse no ouvido: “parece que nos salvamos

  Nisso viu a promotora falando com suas mamães, e agregou: “bom, depende”.

  E saiu correndo em busca da bola de reserva que o SupGaleano guardava na comandância em troca de que não se dissesse nada do misterioso caso dos mantecados desaparecidos, que já estava investigando, sem maior transcendência aparente, Elías Contreras, da comissão de investigação do ezetaelene.

Dou fé:

O gato-cachorro.

-*-

No início da minha intervenção disse que não ia falar de política, nem de ciência, nem de arte, e que não ia a contar um conto.

Menti? Bom, depende…

Obrigado.

SupGaleano buscando os mantecados no estabelecimento cooperativa.

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